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Formação

 Quem fundou a sua Igreja?

Por Carlos Martins Nabeto
Fonte: Agnus Dei

INTRODUÇÃO

Este artigo pode, a princípio, parecer anti-ecumênico, mas não é. Muito pelo contrário, visa esclarecer fatos históricos. Pessoalmente, torço para o êxito do ecumenismo, que tem uma árdua tarefa na busca da aproximação, diálogo e consenso entre as várias denominações cristãs. Contudo, sou obrigado a registrar que, em virtude da imperfeição do ser humano, o ecumenismo caminha a passos lentos… muito lentos mesmo! Na verdade, a discórdia reinante entre os cristãos é fruto mais de interesses pessoais e políticos do que religiosos. É claro que existem diferenças de pontos doutrinais, criados a partir da necessidade de separação e identificação, mas será que existe vontade de discuti-los fraternalmente, a ponto, até, de reconhecê-los como errados?
Volta e meia a imprensa noticia que milhares e milhares de católicos estão indo seguir outras religiões. Vemos, assim, que o católico costuma a ser pacífico, bom ouvinte, o que, aliás, é uma boa virtude ecumênica. Por outro lado, sabemos que muitos católicos assim se declaram porque foram batizados quando crianças, não tendo, após isso, uma verdadeira vida cristã: nunca foram à Igreja (exceto para “pagar” promessas ou participar de missas de sétimo dia), nunca tiveram interesse de participar dos grupos comunitários e nunca se aprofundaram no estudo bíblico e doutrinário da Igreja (no máximo, fizeram a primeira – e única! – comunhão). Infelizmente, vemos atitudes pouco ecumênicas por parte da maioria dos dirigentes de outras igrejas que, aproveitando o fato do pouco conhecimento religioso de boa parte dos católicos, coverte-os às suas respectivas religiões usando, para isso, de artimanhas verdadeiramente anti-ecumênicas. Para discutir esse fenômeno, existem, hoje, duas correntes de pensamento dentro da própria Igreja católica: a primeira acha ótimo esse “êxodo”, já que ocorre uma purificação interna dentro da própria Igreja, uma vez que, como está comprovado, só deixam de ser católicos aqueles que pouco interesse têm pela Igreja. A segunda, embora reconhecendo que essa “purificação” é positiva e que contribui para o aumento da qualidade dos fiéis católicos, afirma que não é justo permitir o afastamento do “joio” já que estes foram, na maioria das vezes, conquistados de forma ilícita, isto é, por desconhecerem a sã doutrina da Igreja, mudaram de fé graças a argumentos duvidosos (apresentados por fiéis de outras igrejas), para os quais não tinham uma explicação satisfatória… De uma forma, como de outra, a própria Igreja católica reconhece que é necessária uma nova evangelização, buscando aprofundar as raízes de todos os fiéis católicos bem como de todos os homens de boa vontade.



TUDO É HISTÓRIA


Ao contrário de todas as demais religiões, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo são religiões históricas, não foram criadas a partir de mitos! Logo, todas as ações realizadas pelos fiéis dessas três grandes religiões ficaram registradas no tempo! São fatos, não lendas; é história, não estória! Não vamos falar sobre os judeus, pois sabemos que eles não aceitaram Jesus como o verdadeiro Messias porque sua visão de Messias, na época de Jesus, era estritamente política: o enviado de Deus que libertaria o povo da dominação romana (aliás, a destruição de Jerusalém em 135 dC pelos romanos foi motivada por essa falsa visão: três anos antes, Bar-Khokba fôra proclamado pelas autoridades religiosas como o Messias libertador). Quanto aos islâmicos, cuja fé baseia-se em Maomé, bem sabemos pela História que trata-se de uma religião com grandes influências do judaísmo e cristianismo.
Vamos, portanto, nos concentrar na fé cristã e ver o que é histórico, o que é verdadeiro, já que, na esmagadora maioria das vezes, os conflitos e divisões são gerados pelos próprios cristãos.



A IGREJA CATÓLICA



Jesus manifestou o interesse de fundar a Igreja (Mt 16,18), Igreja esta que teria autoridade (Mt 18,17), cujo sinal de unidade seria a pessoa de Pedro(Mt 16,18-19; Jo 21,15-17; etc). A Igreja foi oficialmente fundada após a ressurreição de Jesus, no domingo de Pentecostes, com o derramamento do Espírito Santo (At 2). A Igreja cresceu em número, primeiro em Jerusalém, e foi se espalhando pelo mundo graças à pregação e cuidado dos apóstolos. É de conhecimento geral que, naquela época, Roma era a senhora do mundo, o mais vasto império que a humanidade já conheceu. Foram os próprios apóstolos que viram a necessidade do deslocamento do Cristianismo para o centro do império romano a fim de facilitar a pregação do Evangelho. É fato histórico que Pedro e Paulo foram perseguidos e martirizados em Roma.



Clemente Romano, ainda no séc. I, nos 
testemunha esses martírios. Irineu de Lião apresenta, no séc. II, a lista dos sucessores de Pedro, até aquela data. A arqueologia, através de escavações, confirmou a morte de Pedro e Paulo em Roma ao encontrar seus respectivos túmulos. Ao estudarmos a doutrina da Igreja católica, percebemos que ela não se afastou um milímetro sequer desde a sua fundação, ou seja, a Igreja católica atual é a mesma de 2000 anos atrás.



A PRIMEIRA DIVISÃO


A primeira divisão dentro do
Cristianismo ocorreu em 1054 dC (aproximadamente mil anos após a fundação da Igreja). É o que se chama de Cisma Oriental. Antes disso, grandes polêmicas tinham surgido dentro do seio do Cristianismo mas, mesmo assim, sempre se chegava a um consenso geral através da realização de grandes Concílios Ecumênicos, que reuniam bispos de todo o mundo até então conhecido. Aqueles que não se adequavam às decisões eram afastados da Igreja, criando – como hoje em dia – comunidades heréticas que o próprio tempo tratou de exterminá-las. Mas o Cisma Oriental foi a primeira divisão que realmente abalou o mundo cristão. Doutrinariamente, os orientais, baseados em Constantinopla, acusaram a Igreja do ocidente de ter acrescentado o termo filioque ao credo niceno-constantinopolitano, resultando na procedência do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho e não apenas do Pai, como originalmente registrava tal credo, o que dava a impressão que o Espírito Santo passou a “existir” após o Pai e o Filho. Muito embora a Igreja católica tenha demonstrado e comprovado que tal acréscimo nada modifica na fórmula original, nem impõe uma ordem de procedência já que trata-se do Deus único, a Igreja Ortodoxa jamais aceitou voltar à plena comunhão com a Igreja de Roma, o que bem demonstra que a divisão não ocorreu por motivo simplesmente doutrinário.
Mas então qual seria o verdadeiro motivo da separação? Política! Desde o séc. VII, Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, desejava ter os mesmos direitos da sé de Roma, tendo conseguido obter, no máximo, o reconhecimento do privilégio de segunda, logo depois de Roma. Assim, o argumento do “acréscimo ilícito” do filioque foi usado apenas para garantir a separação na ordem política! Isso é História.



AS DEMAIS DIVISÕES


Após a separação da Igreja Ortodoxa, foram necessários mais 500 anos, aproximadamente, para que nova divisão viesse abalar a Igreja do Ocidente. Também é fato histórico que na Igreja medieval ocorriam vários abusos, a grande maioria ocasionados pelo fato da ligação íntima entre Igreja e Estado; era o Estado que nomeava os bispos, sendo estes pouco preparados a nível religioso. Então era comum encontrarmos bispos que compravam determinada sede episcopal, que eram casados irregularmente, que eram impiedosos por falta de vocação religiosa, etc… Era necessária uma Reforma dentro da Igreja! Vários homens lutaram por essas reformas, cada qual a seu jeito. Francisco de Assis é um desses exemplos: lutou por reformas e conseguiu! Não precisou dividir a Igreja, pois reconhecia sua importâcia e autoridade. Mesmo assim, a Igreja ainda não estava totalmente reformada. Infelizmente, homens como Lutero e Calvino, ao invés de se inspirarem no grande exemplo de São Francisco, acharam mais fácil romper com a Igreja, fundando novas religiões… foi a chamada Reforma Protestante. Lendo a história de maneira completamente imparcial, vemos que, mais uma vez, a política se intrometia no campo religioso. Lutero, para impor suas doutrinas, aliou-se aos príncipes alemães descontentes com as boas relações entre o Imperador e o Papa. Calvino fez de Genebra um Estado cuja política era guiada por preceitos religiosos radicais, com visível orientação antipapal e anticatólica. Ao contrário de Lutero e Calvino, o rei Henrique VIII da Inglaterra estava preocupado em conseguir um descendente (filho) do sexo masculino para ser seu sucessor no trono; como Catarina de Aragão, sua esposa, não conseguia dar-lhe esse filho tão esperado e o Papa não consentisse o divórcio, obrigou ao clero inglês a reconhecê-lo como chefe supremo da igreja na Inglaterra. Observemos, portanto, como os argumentos religiosos são usados por todos, desde o princípio, como justificativa  para implantação de idéias meramente políticas.
Lutero havia afirmado que quem dirige o crente é o Espírito Santo, de forma que este não necessita da autoridade de Igreja para ajudá-lo a interpretar a Bíblia, única fonte de fé que deve ser considerada pelo cristão. Esse mesmo ponto de vista foi adotado por Calvino e por todo o mundo protestante. Mesmo sendo oposta à própria Bíblia (2Pd 3,15-16), a livre interpretação ocasionou a fragmentação do Cristianismo em mais de 20 mil ramos, o que é um absurdo, já que cada ramo se julga a verdadeira Igreja de Cristo, tendo como único ponto comum o anticatolicismo. Mas, não reconhecendo a autoridade de Igreja, mais uma vez se voltam contra a Bíblia, pois esta afirma que o fundamento e coluna da verdade é a Igreja (cf. 1Tm 3,15), logo, apesar de possuirem alguns pontos verdadeiros (que são iguais aos da Igreja Católica!!!), não são a verdadeira Igreja de Cristo.
Vejamos a seguinte lista, organizada em ordem cronológica e incompleta, já que seria impossível listar as 20 mil igrejas cristãs hoje existentes:

Ano Denominação Origem Fundador
~33 Fundação da Igreja Católica Palestina Jesus
~55 Igreja Católica se fixa em Roma, com Pedro e Paulo

1054 Igreja Ortodoxa Constantinopla Miguel Cerulário
1521 Igreja Luterana Alemanha Martinho Lutero
1523 Anabatistas Alemanha Zwickau
1523 Batistas Menonitas Holanda Menno Simons
1531 Igreja Anglicana Inglaterra Henrique VIII
1536 Igreja Presbiteriana Suiça João Calvino
1592 Igreja Congregacionalista Inglaterra John Greenwood e outros
1612 Igreja Batista Arminiana ou Geral Inglaterra John Smith
~1630 Sociedade dos Amigos (Quakers) Inglaterra George Fox
1641 Igreja Batista Regular ou Particular Inglaterra Richard Blount
1739 Igreja Metodista Inglaterra John Wesley
1816 Igreja Adventista EUA Willian Miller
1830 Mórmons EUA Joseph Smith
1865 Exército da Salvação Inglaterra Willian Booth
1878 Testemunhas de Jeová EUA Charles T.Russel
1901 Igreja Pentecostal EUA Charles Parham
1903 Igreja Presbiteriana Independente Brasil Othoniel C. Mota
1909 Congregação Cristã no Brasil Brasil Luís Francescon
1910 Igreja Assembléia de Deus EUA/Brasil D.Berg/G.Vingren
1918 Igreja do Evangelho Quadrangular EUA Aimée McPherson
1945 Igreja Católica Apostólica Brasileira (ICAB) Brasil Carlos D.Costa
1955 Cruzada o Brasil para Cristo Brasil Manoel de Mello
1962 Igreja Deus é Amor Brasil David Miranda
1977 Igreja Universal do Reino de Deus Brasil Edir Macedo
Outros Ramos:
  • Adventistas: Adventistas da Era Vindoura, Adventistas do Sétimo Dia, Adventistas Evangélicos, Cristãos Adventistas, Igreja de Deus, União da Vida e do Advento, etc.
  • Batistas: Batistas Abertos, Batistas das Duas Sementes no Espírito, Batistas das Novas Luzes, Batistas das Velhas Luzes, Batistas do Livre Arbítrio, Batistas do Sétimo Dia, Batistas dos Seis Princípios, Batistas Fechados, Batistas Primitivos, Batistas Reformados, Velhos Batistas, etc.
  • Pentecostais:Cruzada da Nova Vida, Cruzada Nacional de Evangelização, Igreja Cristo Pentecostal da Bíblia, Igreja da Restauração, Igreja Jesus Nazareno, Reavivamento Bíblico, Tabernáculo Evangélico de Jesus (Casa da Bênção), etc.
  • Como cada uma dessas igrejas defende sua própria doutrina como verdadeira, apesar de se autonomearem como cristãos, excluem-se mutuamente. Contudo, a única Igreja cristã que existe desde a época de Cristo é a Igreja católica. E observando-se que sua doutrina permaneceu imutável nestes 2000 anos, temos que ela é a Igreja de Cristo, apesar das demais possuírem elementos verdadeiros, vestígios de sua ligação comum com a Igreja católica. Uma brincadeira de criança ilustra muito bem nosso ponto de vista: a brincadeira do “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Uma pessoa transmite uma mensagem para uma segunda pessoa; entra, então, uma terceira pessoa, que recebe a informação da segunda pessoa, e assim, sucessivamente. Não são necessárias muitas pessoas, pois já na quarta ou quinta pessoa, a informação está completamente distorcida da informação original. O mesmo ocorre no campo religioso: como pode, igrejas sem nenhuma ligação com Jesus proclamar-se detentoras da verdade? E como podem essas igrejas atribuir suas mais diversas doutrinas ao mesmo Espírito Santo, sendo estas completamente contraditórias entre si? Não seria uma blasfêmia dizer que o Espírito Santo está ocasionando divisões entre os cristãos se Jesus Cristo afirmou que haveria um só rebanho e um só pastor? (Jo 10,16)
    Além da pergunta: “quem fundou a sua igreja?”, outra pergunta interessante a ser feita aos cristãos não católicos é: “qual seria a sua religião se você nascesse há mil anos atrás?”. Nessa época, havia unidade total entre os cristãos e a resposta seria apenas uma: católica. Ora, se não houve mudanças na doutrina desde a fundação da Igreja, é ilógico e contraditório aceitar atualmente doutrinas que não se alinham com as da Igreja católica!!! Pode-se aceitar ritos e disciplinas diferentes, mas não doutrinas!
    Quem dá sustentação e vida à árvore é sua raiz! Uma árvore sem raiz não sobrevive nem se mantém segura de pé! E o que temos na raiz desta grande árvore que é o Cristianismo? Na base (raiz) está a Igreja católica (é fato histórico; observe mais uma vez a tabela acima)! Sua raiz bebe diretamente Daquele que dá e é a água viva (cf. Jo 4,10), Jesus Cristo, o Filho de Deus. E é por isso que ela, ainda nos dias de hoje, tem se demonstrado forte e vigorosa (apesar da sua idade), e assim será até a consumação dos séculos (cf. Mt 28,20b).

Catequese do Papa: a teologia precisa da sensibilidade das mulheres


Segunda catequese dedicada a Santa Hildegarda de Bingen


CIDADE DO VATICANO, quarta-feira, 8 de setembro de 2010  - Apresentamos, a seguir, a catequese dirigida pelo Papa aos grupos de peregrinos do mundo inteiro, reunidos na Sala Paulo VI para a audiência geral.
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Queridos irmãos e irmãs:
Hoje, quero retomar e continuar a reflexão sobre Santa Hildegarda de Bingen, importante figura feminina da Idade Média, que se distinguiu pela sua sabedoria espiritual e pela sua santidade de vida. As visões místicas de Hildegarda são semelhantes àquelas do profeta do Antigo Testamento:  expressando-se com as categorias culturais e religiosas da sua época, interpretava a Sagrada Escritura à luz de Deus, aplicando-a às várias circunstâncias da vida. Dessa forma, todos os que a ouviam se sentiam chamados a praticar um estilo de vida cristã coerente e comprometido. Em uma carta a São Bernardo, a mística renana confessa: "A visão cativa todo o meu ser: não vejo com os olhos do corpo, mas me aparece no espírito dos mistérios (...) Conheço o significado profundo do que é exposto no Saltério, nos Evangelhos e nos outros livros, que me são mostrados na visão. Este arde como uma chama em meu peito e na minha alma, e me ensina a compreender profundamente o texto" (Epistolarium pars prima I-XC: CCCM 91).
As visões místicas de Hildegarda são ricas de conteúdo teológico. Elas se referem aos principais acontecimentos da história da salvação, por meio de uma linguagem principalmente poética e simbólica. Por exemplo, em sua obra mais famosa, intitulada Scivias, ou seja, "Conhece os caminhos", ela resume em 35 visões os eventos da história da salvação, da criação do mundo até o final dos tempos. Com as características próprias da sensibilidade feminina, Hildegarda, especificamente na seção central da sua obra, desenvolve o tema do matrimônio místico entre Deus e a humanidade, realizado na Encarnação. Sobre o lenho da cruz se realizam as núpcias do Filho de Deus com a Igreja, sua esposa , repleta de graça e capaz de dar a Deus novos filhos, no amor do Espírito Santo (cf. Visio tertia: PL 197, 453c).
A partir dessas breves referências, vemos já como também a teologia pode receber uma contribuição peculiar das mulheres, porque são capazes de falar de Deus e dos mistérios da fé com sua inteligência e sensibilidade próprias. Alento por esse motivo todas aquelas que desempenham este serviço a realizá-lo com profundo espírito eclesial, alimentando a própria reflexão com a oração e tendo em conta a grande riqueza, ainda em parte inexplorada, da tradição mística medieval, sobretudo a representada por modelos luminosos, como Hildegarda de Bingen.
A mística renana é autora também de outros escritos, dois deles particularmente importantes, porque mostram, como em Scivias, suas visões místicas: o Liber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida) e o Liber divinorum operum (Livro das obras divinas), também chamado De operatione Dei. No primeiro, descreve-se uma visão única e poderosa de Deus que vivifica o cosmos com sua força e com sua luz. Hildegarda sublinha a profunda relação entre o homem e Deus e nos recorda que toda a criação, da qual o ser humano é o cume, recebe a vida da Trindade. O texto está centrado na relação entre virtude e vícios, de maneira que o ser humano deve enfrentar diariamente o desafio dos vícios, que o afastam no caminho para Deus, e as virtudes que o favorecem. É um convite a afastar-se do mal para glorificar a Deus e entrar, depois de uma existência virtuosa, na vida "cheia de alegria".
No segundo livro, considerado por muitos sua obra-prima, descreve a criação em sua relação com Deus e a centralidade do homem, expressando um forte cristocentrismo de sabor bíblico-patrístico. A santa, que apresenta cinco visões inspiradas no Prólogo do Evangelho de São João, refere-se às palavras que o Filho dirige ao Pai: "Toda obra que quiseste e me encomendaste, eu a cumpri, e hoje estou em ti e tu em mim, e somos uma só coisa" (Pars III, Visio X: PL 197, 1025a).
Em outros escritos, por último, Hildegarda manifesta uma variedade de interesses e o dinamismo cultural dos monastérios femininos da Idade Média, diferentemente dos preconceitos que ainda hoje existem sobre essa época. Hildegarda dedicou-se à medicina e às ciências naturais, assim como à música, pois tinha talento artístico. Compôs também hinos, antífonas e cantos, recolhidos com o título Symphonia Harmoniae Caelestium Revelationum (Sinfonia da Harmonia das Revelações Celestes), que eram gozosamente interpretados nos mosteiros, difundindo uma atmosfera de serenidade, e que chegaram até nós. Para ela, toda a criação é uma sinfonia do Espírito Santo, que é em si mesmo alegria e júbilo.
A popularidade que rodeava Hildegarda levava muitas pessoas a fazer-lhe consultas. Por este motivo, dispomos de muitas de suas cartas. A ela se dirigiam comunidades monásticas de homens e mulheres, bispos e abades. Muitas das respostas continuam sendo válidas para nós. Por exemplo, a uma comunidade religiosa feminina, Hildegarda escreveu: "A vida espiritual deve ser atendida com muita dedicação. No início, o cansaço é amargo, dado que exige a renúncia aos caprichos, ao prazer da carne e a coisas semelhantes. Mas, quando a alma se deixa fascinar pela santidade, experimentará como algo doce e agradável o próprio desprezo do mundo. Só é necessário prestar atenção inteligentemente a que a alma não murche" (E. Gronau,Hildegard.Vita di una donna profetica alle origini dell'età moderna, Milão, 1996, p. 402).
E quando o imperador Federico Barbarroja provocou um cisma eclesial, opondo 3 antipapas ao Papa legítimo, Alexandre III, Hildegarda, inspirada em suas visões, não hesitou em recordar-lhe que também ele, o imperador, estava submetido ao juízo de Deus. Com a audácia que caracteriza todo profeta, escreveu ao imperador estas palavras da parte de Deus: "Atento, atento a esta malvada conduta dos ímpios que me desprezam! Escuta, rei, se queres viver! Do contrário, minha espada te transpassará!" (ibidem, p. 412).
Com a autoridade espiritual de que estava dotada, Hildegarda viajou nos últimos anos da sua vida,  apesar da idade avançada e das penosas condições dos deslocamentos. Todos a escutavam com prazer, inclusive quando utilizava um tom severo: consideravam-na uma mensageira enviada por Deus. Ela exortava sobretudo as comunidades monásticas e o clero a viverem em conformidade com sua vocação. Em particular, Hildegarda se opôs ao movimento dos cátaros alemães. Os cátaros, literalmente "puros", propugnavam uma reforma radical da Igreja, principalmente para combater os abusos do clero. Ela os repreendeu com força, por querer subverter a própria natureza da Igreja, recordando-lhes que uma verdadeira renovação da comunidade eclesial não se  consegue tanto com a mudança das estruturas, e sim com um sincero espírito de penitência e um caminho de conversão. Esta é uma mensagem que nunca devemos esquecer.
Invoquemos sempre o Espírito Santo, para que suscite na Igreja mulheres santas e valentes, como Santa Hildegarda de Bingen, que, valorizando os dons recebidos de Deus, ofereçam sua preciosa e peculiar contribuição para o crescimento espiritual das nossas comunidades e da Igreja na nossa época.
[No final da audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos em vários idiomas. Em português, disse:]
Queridos irmãos e irmãs:
Santa Hildegarda, importante figura feminina da Idade Média, distinguiu-se pela sua sabedoria espiritual e santidade de vida. Nos seus escritos e contatos, sublinha a profunda relação entre o homem e Deus, recordando que toda a criação, em cujo vértice está o ser humano, recebe vida da Santíssima Trindade. Quando Frederico Barba-Ruiva causou um cisma eclesial, opondo vários antipapas ao Papa legítimo Alexandre III, Hildegarda recorda ao imperador que também ele estava sujeito ao juízo de Deus. E a quantos invocavam uma reforma radical da Igreja pondo em risco a sua verdadeira natureza, lembra que uma autêntica renovação não se obtém tanto com a mudança das estruturas, mas sobretudo com um sincero espírito de penitência e um real caminho de conversão.
Amados peregrinos de língua portuguesa, a minha saudação fraterna e agradecida para todos, com menção especial para os grupos de fiéis da Amora, em Portugal, e das paróquias do Divino Espírito Santo e São João Batista, no Rio de Janeiro, Santa Rita de Cássia e Nossa Senhora Mãe  da Igreja, em Belo Horizonte. Esta peregrinação a Roma fortaleça, nos vossos corações, o sentir e o viver em Igreja, a exemplo de Santa Hildegarda, sob o terno olhar da Virgem Mãe. A Ela confio os anseios bons que aqui vos trouxeram. O Papa ama-vos, e a todos abençoa no Senhor.
[Tradução: Aline Banchieri e Alexandre Ribeiro.

Ser Santo:O Processo de Canonização


Crucificação de São Pedro


Credo in Deum Patrem omnipotentem, Creatorem caeli et terrae,

et in Iesum Christum, Filium Eius unicum, Dominum nostrum,
qui conceptus est de Spiritu Sancto, natus ex Maria Virgine,
passus sub Pontio Pilato, crucifixus, mortuus, et sepultus,
descendit ad ínferos, tertia die resurrexit a mortuis,
ascendit ad caelos, sedet ad dexteram Dei Patris omnipotentis,
inde venturus est iudicare vivos et mortuos.
Credo in Spiritum Sanctum,
sanctam Ecclesiam catholicam, sanctorum communionem, 
remissionem peccatorum,
carnis resurrectionem,
vitam aeternam.
Amen.



Inicialmente, os cristãos veneravam os mártires que morriam na arena.
Eles eram sepultados nas catacumbas de Roma, e cultuados como santos por sua morte heróica, testemunhando a divindade de Cristo. Suas relíquias realizavam inúmeros milagres. Daí, sua proclamação como santos.
Este costume continuou por muitos séculos.
Depois, pelo século XI, para evitar abusos, a Igreja começou a instituir um processo a fim de examinar a vida e os escritos (a doutrina) daqueles que a opinião geral chamava de santos. Começou assim o chamado Processo de Canonização, que se tornou um instrumento jurídico dos mais perfeitos jamais realizados.O Processo de Canonização começava pelo chamado processo de NÃO-CULTO.
Por esse processo, primeiro verificava-se se o candidato à canonização como santo fora cultado sem licença da Igreja. Isso era muito importante, porque impedia que interesses familiares ou de grupos, por meio de propaganda , impingissem à Igreja um pseudo santo.
As estapas no processo de canonização se dão na seguinte maneira,nesta ordem de reconhecimento:
1.      Servo de Deus (refere-se a uma pessoa cujo processo de canonização foi oficialmente aberto)
2.     Venerável (O conceito assenta diretamente sobre o adjectivo “venerável“, derivado do substantivo latino veneratio, que significa respeito e culto e portanto digno de reverência e veneração)
3.     Beato (é o reconhecimento feito pela Igreja de que a pessoa a quem é atribuída se encontra no Paraíso, em estado de beatitude, e pode interceder por aqueles que lhe recorrem em oração.)
4.     Santo (são santos todos aqueles que foram convertidos e salvos por Jesus Cristo)
A Congregação para as Causas dos Santos (em latim Congregatio de Causis Sanctorum) é uma prefeitura da Cúria Romana(orgão administrativo da Santa Sé) que processa o complexo trâmite que leva à canonização dos santos, passando pela declaração das virtudes heroicas (reconhecimento do estatuto de venerável) e pela beatificação. Depois de elaborado um processo, incluindo a constatação canônica dos milagres, o caso é apresentado ao papa, que decide se proceder ou não à beatificação ou canonização.
Seu nome anterior era Sagrada Congregação dos Ritos, fundada pelo Papa Sixto V em 22 de janeiro de 1588 com a bula papal Immensa Æterni Dei, que tratava tanto da regulação do culto divino como das causas dos santos. Em 8 de maio de 1969, o Papa Paulo VI emitiu a Constituição Apostólica Sacra Rituum Congregatio, dividindo a congregação em duas, uma passando a ser a Congregação para o Culto Divino e outra para as causas dos santos.
Com as profundas mudanças no processo de canonização introduzidas pelo Papa João Paulo II em 1983, o Colégio de Relatores foi criado para preparar as causas dos declarados Servos de Deus.
Em 18 de fevereiro de 2008 a Santa Sé torna público a instrução “Sanctorum Mater” da Congregação para a Causa dos Santos sobre as normas que regulam o início das causas de beatificação juntamente com o “Index ac status causarum”.

São Domingos Sávio
São Domingos Sávio
A Constituição Apostólica Divinus perfectionis Magister (1983), de João Paulo II, estabeleceu de uma vez as normas para a instrução das causas de canonização e para o trabalho da Congregação para as Causas dos Santos. Nela é afirmado: “A Sé Apostólica, (…) propõe homens e mulheres que sobressaem pelo fulgor da caridade e de outras virtudes evangélicas para que sejam venerados e invocados, declarando-os Santos e Santas em ato solene de canonização, depois de ter realizado as oportunas investigações.”
Em 18 de fevereiro de 2008 a Santa Sé torna público a instrução “Sanctorum Mater” (1983)da Congregação para a Causa dos Santos sobre as normas que regulam o início das causas de beatificação juntamente com o “Index ac status causarum“.
A Instrução se divide em seis partes:
  • Primeira: diz da necessidade de uma autêntica fama de santidade para se dar início ao processo e se explicam as figuras e tarefas do autor do postulador e do bispo competente para a causa.
  • Segunda: nela é descrita a fase preliminar da causa que chega até à concessão do “nulla osta” da Congregação para as Causas dos Santos.
  • Terceira: diz da celebração da causa.
  • Quarta: trata das modalidades para se recolher as provas documentais.
  • Quinta: cuida das provas testemunhais e na
  • Sexta: são indicados os procedimentos para os atos conclusivos da instrução diocesana.
Segundo a Constituição Divinus perfectionis Magister e a instrução Sanctorum Mater, ao bispo diocesano ou autoridade da hierarquia a ele equiparada, de iniciativa própria ou a pedido de fiéis, é a quem compete investigar sobre a vida, virtudes ou martírio e fama de santidade e milagres atribuídos e, se considerar necessário, a antiguidade do culto da pessoa cuja canonização é pedida. Nesta fase a pessoa investigada recebe o tratamento de “Servo de Deus” se é admitido o início do processo.
cristãos no coliseu
cristãos no coliseu
Haverá um postulador que deverá recolher informações pormenorizadas sobre a vida do Servo de Deus e informar-se sobre as razões que pareceriam favorecer a promoção da causa da canonização. Os escritos que tenham sido publicados devem ser examinados por teólogos censores, nada havendo neles contra a fé e aos bons costumes, passa-se ao exame dos escritos inéditos e de todos os documentos que de alguma forma se refiram à causa. Se ainda assim o bispo considerar que se pode ir em frente, providenciará o interrogatório das testemunhas apresentadas pelo postulador e de outras que achar necessário.
Em separado se faz o exame do eventual martírio e o das virtudes, que o servo de Deus deverá ter praticado em grau heróico (fé, esperança e caridade; prudência, temperança, justiça, fortaleza e outras) e o exame dos milagres a ele atribuídos. Concluídos estes trabalhos tudo é enviado a Roma para a Sagrada Congregação da Causa dos Santos.
Para tratar das causas dos santos existem, na Congregação para a Causa dos Santos, consultores procedentes de diversas nações, uns peritos em história e outros em teologia, sobretudo espiritual, há também um Conselho de médicos. Reconhecida a prática das virtudes em grau heróico o decreto que o faz declara o Servo de Deus “Venerável“.
Havendo apresentação de milagre este é examinado numa reunião de peritos e se se trata de curas pelo Conselho de médicos, depois é submetido a um Congresso especial de teólogos e por fim à Congregação dos cardeais e bispos. O parecer final destes é comunicado ao Papa, a quem compete o direito de decretar o culto público eclesiástico que se há de tributar aos Servos de Deus. A Beatificação portanto, só pode ocorrer após o decreto das virtudes heróicas e da verificação de um milagre atribuído à intercessão daquele Venerável.
momento de martirio
momento de martírio
O milagre deve ser uma cura inexplicável à luz da ciência e da medicina, consultando inclusive médicos ou cientistas de outras religiões e ateus. Deve ser uma cura perfeita, duradoura e que ocorra rapidamente, em geral de um a dois dias. Comprovado o milagre é expedido um decreto, a partir do qual pode ser marcada a cerimônia de beatificação, que pode ser presidida pelo Papa ou por algum bispo ou cardeal delegado por ele.
Caso a pessoa em causa já tenha o estatuto de beato e seja comprovado mais um milagre pela Igreja, em missa solene o Santo Padre ou um Cardeal por ele delegado declarará aquela pessoa como Santa e digna de ser levada aos altares e receber a mesma veneração em todo o mundo, concluindo assim o processo de Canonização.
DECLARAÇÃO DAS VIRTUDES HERÓICAS
Virtudes heróicas, é a designação canónica dada ao conjunto de requisitos de exemplaridade de vida que devem ser demonstrados para que se inicie o processo formal de canonização na Igreja Católica Romana. A demonstração da existência de virtude heróica é feita pela análise, post mortem(após a morte), do comportamento e percurso de vida do candidato à santidade, tendo de ficar claro, e para além de qualquer dúvida, que em vida a conduta do candidato se pautou pela prática para além do comum das virtudes teologais e das virtudes cardeais.
VIRTUDES CARDEAIS
Segundo a Doutrina da Igreja Católica, elas “são perfeições habituais e estáveis da inteligência e da vontade humanas, que regulam os nossos actos, ordenam as nossas paixões e guiam a nossa conduta segundo a razão e a fé. Adquiridas e reforçadas por actos moralmente bons e repetidos, são purificadas e elevadas pela graça divina“.As virtudes cardeais são quatro:
  • a prudência, que “dispõe a razão para discernir em todas as circunstâncias o verdadeiro bem e a escolher os justos meios para o atingir. Ela conduz a outras virtudes, indicando-lhes a regra e a medida“, sendo por isso considerada a virtude-mãe humana.
  • a justiça, que é uma constante e firme vontade de dar aos outros o que lhes é devido;
  • a fortaleza (ou Força) que assegura a firmeza nas dificuldades e a constância na procura do bem;
  • e a temperança (ou Moderação) que “modera a atracção dos prazeres, assegura o domínio da vontade sobre os instintos e proporciona o equilíbrio no uso dos bens criados“, sendo por isso descrita como sendo a prudência aplicada aos prazeres.
Iustitia
(Justiça)
Fortitudo
(Fortaleza)
Sapientia
(Prudência)
Temperantia
(Temperança)
Iustitia Papstgrab Bamberg aus Gottfried Henschen u Daniel Papebroch 1747.jpg
Fortitudo Papstgrab Bamberg aus Gottfried Henschen u Daniel Papebroch 1747.jpg
Sapientia Papstgrab Bamberg aus Gottfried Henschen u Daniel Papebroch 1747.jpg
Temperantia Papstgrab Bamberg aus Gottfried Henschen u Daniel Papebroch 1747.jpg

 

 VIRTUDES TEOLOGAIS
Segundo o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, as virtudes teologais “têm como origem, motivo e objecto imediato o próprio Deus. São infundidas no homem com a graça santificante, tornam-nos capazes de viver em relação com a Trindade e fundamentam e animam o agir moral do cristão, vivificando as virtudes humanas. Elas são o penhor da presença e da acção do Espírito Santo nas faculdades do ser humano“.
No excerto bíblico 1ª Coríntios 13:13, apresenta-nos a seguinte citação: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”. Num outro excerto bíblico “Gálatas 5:6″, cita o seguinte: “a Fé actua pelo amor“.
As virtudes teologais existem como complemento às virtudes cardeais e são três:
    São Pio da Pieltrecina
  • : através dela, os cristãos crêem em Deus, nas suas verdades reveladas e nos ensinamentos da Igreja, visto que Deus é a própria Verdade. Pela fé, “o homem entrega-se a Deus livremente. Por isso, o crente procura conhecer e fazer a vontade de Deus, porque «a fé opera pela caridade» (Gal 5,6)“.
  • Esperança: por meio dela, os crentes, por ajuda da graça do Espírito Santo, esperam a vida eterna e o Reino de Deus, colocando a sua confiança perseverante nas promessas de Cristo.
  • Caridade (ou amor): por meio dela, “amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos por amor de Deus. Jesus faz dela o mandamento novo, a plenitude da lei“. Para os crentes, a caridade é «o vínculo da perfeição» (Col 3,14), logo a mais importante e o fundamento das virtudes. O Amor é também visto como uma “dádiva de si mesmo” e “o oposto de usar“.
O Vaticano divulgou em 19/03/2008 novas diretrizes sobre os processos de canonização, tentando esclarecer e aperfeiçoar o veículo por meio do qual a Igreja Católica escolhe seus santos.
As instruções, dirigidas aos bispos, tratam desde o modo de identificar os possíveis milagres até detalhes mais mundanos e burocráticos, como o uso de computadores e de aparelhos de gravação para arquivar testemunhos sobre a vida de um candidato a santo.
- Estamos atualizando isso – disse o cardeal José Saraiva Martins, que comanda o órgão do Vaticano encarregado das canonizações – um processo complicado que, algumas vezes, pode se estender por séculos.
Segundo o Vaticano, as instruções esclarecem regras antigas e visam a eliminar alguns pontos considerados confusos em nível regional, onde os bispos dão início ao que se chama de “causas”, o processo de canonização assumido pela Santa Sé em um estágio posterior.
LISTA DE PAPAS CANONIZADOS

001 São Pedro – (3067)
002 São Lino – (6776)
003 Santo Anacleto I (Cleto)- (7688)
004 São Clemente I – (88? – 97?)
005 Santo Evaristo – (97? – 105?)
006 Santo Alexandre I – (105? – 115)
007 São Sisto I – (115? – 125?)
008 São Telésforo – (125? – 136?)
009 Santo Higino – (136? – 140?)
010 São Pio I – (140? – 155?)
011 Santo Aniceto – (155? – 166?)
012 São Sotero – (166175?)
013 Santo Eleutério – (175189?)
014 São Vítor I – (189? – 199?)
015 São Zeferino – (199? – 217)
016 São Calisto I – (217? – 222?)
017 Santo Urbano I – (222? – 230?)
018 São Ponciano – (230? – 235?)
019 Santo Antero – (235? – 236?)
020 São Fabiano – (236? – 250?)
021 São Cornélio – (251? – 253?)
022 São Lúcio I – (253? – 254?)
023 Santo Estêvão I – (254? – 257?)
024 São Sisto II – (257? – 258?)
025 São Dionísio – (260? – 268?)
026 São Félix I – (269? – 274?)
027 Santo Eutiquiano – (275? – 283?)
028 São Caio – (283? – 296?)
029 São Marcelino – (296? – 304?)
030 São Marcelo I – (308? – 309?)
031 Santo Eusébio – (309? – 310?)
032 São Melquíades – (311314)
033 São Silvestre I – (314? – 335?) –
034 São Marcos – (335? – 336?)
035 São Júlio I – (337? – 352)
037 São Dâmaso I – (366383)
038 São Sirício – (384399)
039 Santo Anastácio I – (399401)
040 Santo Inocêncio I – (401417)
041 São Zósimo – (417418)

042 São Bonifácio I – (418422)
043 São Celestino I – (422432)
044 São Sisto III – (432440)
045 São Leão I, Magno – (440461)
046 Santo Hilário – (461468)
047 São Simplício – (468483)
048 São Félix II – (483492)
049 São Gelásio I – (492496)
051 São Símaco – (498514)
052 Santo Hormisda – (514523)
053 São João I – (523526)
054 São Félix III – (526530)
055 São Bonifácio II – (530532)
056 São João II – (533535)
057 Santo Agapito – (535536)
058 São Silvério – (536537)
061 São Júlio III – (561574)
062 São Bento I – (575579)
064 São Gregório I, o Grande – (590604) O.S.B.
067 São Bonifácio IV – (608615) O.S.B.
068 Santo Adeodato I – (615618)
074 São Martinho I – (649655)
075 Santo Eugênio I – (654657)
076 São Vitaliano – (657672)
079 Santo Agatão – (678681)
080 São Leão II – (682683)
081 São Bento II – (684685)
084 São Sérgio I – (687701)
090 Sçao Gregório III – (731741)
091 São Zacarias – (741752)
092 Santo Estevão II – (752)
094 São Paulo I – (757767)
097 São Leão III – (795816)
099 São Pascoal I – (817824)
104 São Leão IV – (847855) O.S.B.
110 Santo Adriano III – (884885)
153 São Leão IX – (10491054)
158 São Gregório VII – (10731085) O.S.B.
193 São Celestino V – (1294) O.S.B.
226 São Pio V – (15661572) O.P.
258 São Pio X – (19031914) O.F.S.

Papas beatificados

159 Beato Vitor III – (10861087) O.S.B.
160 Beato Urbano II – (10881099) O.S.B.
168 Beato Eugênio III – (11451153) O.Cist.
185 Beato Gregório X – (12711276) O.Cist.
186 Beato Inocêncio V – (1276) O.P.
195 Beato Bento XI – (13031304) O.P.
201 Beato Urbano V – (13621370) O.S.B.
241 Beato Inocêncio XI – (16761689)
256 Beato Pio IX – (18461878) O.F.S.
262 Beato João XXIII – (19581963) O.F.S.

 Papas declarados Veneráveis

261 Servo de Deus Papa Pio XII – (19391958) O.P.
265 Servo de Deus Papa João Paulo II – (1978-2005)

Papas declarados Servos de Deus

263 Servo de Deus Papa Paulo VI – (19631978) O.F.S.
264 Servo de Deus Papa João Paulo I – (1978)

Símbolos e Brasões da Igreja – Qual seus Significados???

  Visitando as catacumbas, no subsolo da cidade de Roma, o peregrino não pode deixar de sentir um misto de assombro e reverente curiosidade ao percorrer os lugares onde os primeiros cristãos se ocultavam das perseguições que lhe moviam os imperadores pagãos.
Ali ele esquadrinha com os olhos as antigas inscrições e as toscas pinturas, procurando imaginar o que sentiam, o que pensavam, e como teriam ali vivido esses nossos ancestrais na fé. Passa lentamente a mão sobre as pedras e, de repente, depara-se com algo gravado em relevo. Trata-se do desenho de um pequeno peixe, rudemente traçado, mas sem dúvida um peixe

Qual é o seu significado?

A palavra peixe em grego se dizia “ichthyos” (ΙΧθΥΣ), mas entre os primeiros cristãos era usada como um anagrama, pois suas cinco letras eram também a abreviação da frase: Iesous Christos Theou Yios Soter (Jesus Cristo Filho de Deus, Salvador). A figura tinha, ademais, um significado místico, porque, como os peixes, também os cristãos eram “nascidos nas águas“.
Tratava-se, pois, de um dos primeiros símbolos criados para representar realidades da fé e da vida cristãs.

Com efeito, toda instituição sadia que se forma ou adquire uma personalidade própria, tem como uma de suas primordiais preocupações desenvolver símbolos que a caracterizem e distingam das demais. E uma das manifestações da riqueza e força espirituais da Igreja Católica é a fecundidade em traduzir numa exuberante coleção de símbolos o universo sobrenatural que ela contém.
Acima de todos, sem dúvida, está a própria Cruz, sinal por excelência instituído pelo próprio Salvador que nela quis derramar todo o seu Preciosíssimo Sangue para nossa redenção. No entanto, é espantosamente grande o número dos símbolos cristãos, como grande é a quantidade de carismas e vocações dentro da Igreja.

Brasões eclesiásticos

Brasão do Cardeal Claudio Hummes, Arce-Bispo de São PauloUm capítulo particularmente interessante dessa história é o da heráldica eclesiástica.
Denomina-se heráldica o estudo dos brasões cujos significados, regras e convenções foram se sedimentando desde meados da Idade Média. Na heráldica eclesiástica, os brasões se dividem em duas categorias: pessoais, por exemplo, o de um bispo ou de um abade; e impessoais, como o de uma ordem ou de uma associação religiosa.
Cada família nobre européia possuía seu brasão. Tornou-se comum que bispos também o possuíssem, pois pertenciam a uma nobreza espiritual, a título de sucessores dos Apóstolos. Até os dias de hoje, depois de ordenado, o novo bispo deve definir como será o seu.
Os brasões medievais eram muitas vezes encimados por um elmo, que indicava a origem guerreira daquele ramo nobiliárquico. Aos religiosos, emissários da paz, não ficaria bem o elmo da guerra, razão pela qual os brasões episcopais têm em seu topo o “chapéu do peregrino“.
Os Brasões Cardinalícios, Patriarcais, Arquiepiscopais e Episcopais não apresentam diferenças substanciais, mas detêm traços diferenciativos, além é claro dos elementos próprios que cada Bispo insere no escudo.
Como reconhecê-los simplesmente admirando sua beleza? Um católico atento, ao observar a presença de um brasão poderá distinguir o grau hierárquico ou de honra do seu detentor.
Brasão Cardinalício
Brasão Cardinalício
O Brasão Cardinalício é representado com o chapéu prelatício, cordões e borlas em vermelho púrpura, a cor do martírio presente na imposição do Barrete sobre o novo príncipe dos apóstolos. As borlas cardinalícias são no número de 30, sendo 15 de cada lado, dispostas em cinco ordens de 1, 2, 3, 4, 5. O Brasão Patriarcal e Arquiepiscopal também possuem 30 borlas, dispostas da mesma forma que o Brasão de um Cardeal, mas ambos possuem o chapéu prelatício, cordões e borlas na cor verde. Por sua vez, o Brasão Episcopal, que sendo também com a parte externa na cor verde, mas com 12 borlas, 6 de cada lado, dispostas em 1, 2, 3.
Cruz Patriarcal
Cruz Patriarcal
Outro elemento diferenciativo é a Cruz. Nos Brasões Cardinalícios, Patriarcais e Arquiepiscopais (e dos Legados Pontifícios) usa-se a Cruz Patriarcal, ou seja, a Cruz com 2 traves (ou com 4 pontas), enquanto os Brasões Episcopais usa-se a Cruz de uma trave (2 pontas) ou Cruz do Calvário.
Os brasões eclesiásticos são ornados por borlas. Pendentes simetricamente dos dois lados do chapéu, elas indicam, por suas cores e número, o grau de hierarquia. Assim, um cardeal tem trinta borlas vermelhas, um arcebispo vinte verdes, e um bispo doze, também verdes.

Oito séculos da história dos Papas

Brasão do Papa João XXIII
Brasão do Papa João XXIII
O brasão pontifício é o único que possui a tríplice coroa chamada “tiara“. No início, era apenas um tipo de barrete fechado. Em 1130 foi acrescido de uma coroa, símbolo de soberania sobre os Estados da Igreja. Bonifácio VIII, em 1301, acrescentou uma segunda coroa, na época do confronto com o Rei da França, Filipe o Belo, provavelmente para representar a autoridade papal em face da temporal. E Bento XII acrescentou em 1342 uma terceira coroa, para significar a autoridade moral do Papa sobre todos os monarcas.
Com o tempo, tendo perdido seus significados de caráter temporal, a tiara de prata permaneceu com as três coroas de ouro, para representar os três poderes do Sumo Pontífice: de Ordem sagrada, de Jurisdição e de Magistério.
Saindo pelos dois lados do escudo, figuram a chaves pontifícias, uma em ouro, outra em prata. Simbolizam a esfera espiritual e a temporal, e lembram o “poder das chaves” dado por Jesus a Pedro e seus sucessores: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra, será desligado no céu” (Mt 16,19).
Brasão do Papa João Paulo II
Brasão do Papa João Paulo II
Ao analisar a série de brasões pontifícios elaborados ao longo de quase oito séculos, podemos descobrir traços da história dos papas que os usaram, o que equivale a dizer parte significativa da história da própria Igreja. Por exemplo, São Pio X, João XXIII e João Paulo I foram Patriarcas de Veneza. Os brasões dos três documentam esse fato, estampando o leão alado de São Marcos, símbolo dessa maravilhosa cidade.
João Paulo II, papa profundamente mariano, quis fazer em seu escudo uma referência formal a seu afetuoso e filial ato de entrega à Santíssima Virgem Maria: nele fez gravar um grande “M”, tendo abaixo a frase “Totus Tuus” – “Todo Vosso”.

O Brasão de Bento XVI

O brasão do Papa Bento XVI é rico em significados, vários dos quais vêm de seu tempo de arcebispo e de cardeal, se bem que ordenados de modo diverso na nova composição. No campo central, em vermelho, vê-se uma grande concha dourada. Recorda ela a lenda segundo a qual Santo Agostinho encontrou na praia um menino que com uma concha procurava transferir a água do mar para um buraco cavado na areia, símbolo do vão esforço de procurar fazer entrar na limitada mente humana o mistério da Santíssima Trindade.
Na parte do escudo denominada “capa” encontram-se também dois símbolos provenientes da tradição da Baviera, introduzidos em 1977 no brasão arquiepiscopal de Joseph Ratzinger. No ângulo direito (à esquerda de quem olha), está uma cabeça de mouro, que é o antigo símbolo da Diocese de Freising. No ângulo superior esquerdo está representado um urso carregando um fardo.
Segundo uma antiga tradição, o primeiro Bispo de Freising, São Corbiniano, ao atravessar uma floresta, foi atacado por um urso que lhe devorou o cavalo. O Santo aplacou a fera e a fez carregar até Roma sua bagagem.
* * *
Analisar a sucessão dos símbolos cristãos ao longo dos séculos é fazer um interessante estudo da história da própria Igreja. Cada geração acrescenta um novo elo a essa cadeia ininterrupta, iniciada pelo próprio Cristo Senhor Nosso. Desde a antiqüíssima figura do peixe, gravada numa pedra já quase desfeita, até o brasão de um bispo recém-ordenado, todos fazem parte da mesma história desta Igreja peregrina e imortal, que sem cessar se renova ao sopro do Espírito Santo.
Renova-se como uma grande e saudável árvore cujas raízes estão solidamente plantadas no fértil solo do passado, e cujos novos ramos se multiplicam possantes e verdejantes, voltados para o céu, para o futuro.
Matéria de Carlos Toniolo(Revista Arautos do Evangelho, Maio/2006, n. 53, p. 37 à 39)
Quantas vezes você já ouviu de algum protestante a afirmação de que a Igreja Católica teria acrescentado vários livros apócrifos à Bíblia durante o Concílio de Trento, no séc. XVI? Quando eles falam isso, estão querendo se referir a sete livros do Antigo Testamento que não se encontram em suas bíblias: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc e os dois livros dos Macabeus (além de alguns trechos dos livros de Daniel e Ester). Porém, a própria História - que é imutável - desmente tal argumento, vistos os testemunhos abaixo:

  • "Cânon 36 - Parece-nos bom que, fora das Escrituras canônicas, nada deva ser lido na Igreja sob o nome 'Divinas Escrituras'. E as Escrituras canônicas são as seguintes: Gênese, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, quatro livros dos Reinos1, dois livros dos Paralipômenos2, Jó, Saltério de Davi, cinco livros de Salomão3, doze livros dos Profetas4, Isaías, Jeremias5, Daniel, Ezequiel, Tobias, Judite, Ester, dois livros de Esdras6 e dois [livros] dos Macabeus. E do Novo Testamento: quatro livros dos Evangelhos7, um [livro de] Atos dos Apóstolos, treze epístolas de Paulo8, uma do mesmo aos Hebreus9, duas de Pedro, três de João, uma de Tiago, uma de Judas e o Apocalipse de João.10 Sobre a confirmação deste cânon se consultará a Igreja do outro lado do mar11. É também permitida a leitura das Paixões dos mártires na celebração de seus respectivos aniversários12" (Concílio de Hipona, 08.Out.393).

  • "Parece-nos bom que, fora das Escrituras canônicas, nada deva ser lido na Igreja sob o nome 'Divinas Escrituras'. E as Escrituras canônicas são as seguintes: Gênese, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, quatro livros dos Reinos, dois livros dos Paralipômenos, Jó, Saltério de Davi, cinco livros de Salomão, doze livros dos Profetas, Isaías, Jeremias, Daniel, Ezequiel, Tobias, Judite, Ester, dois livros de Esdras e dois [livros] dos Macabeus. E do Novo Testamento: quatro livros dos Evangelhos, um [livro de] Atos dos Apóstolos, treze epístolas de Paulo, uma do mesmo aos Hebreus, duas de Pedro, três de João, uma de Tiago, uma de Judas e o Apocalipse de João12. Isto se fará saber também ao nosso santo irmão e sacerdote, Bonifácio, bispo da cidade de Roma, ou a outros bispos daquela região, para que este cânon seja confirmado, pois foi isto que recebemos dos Padres como lícito para ler na Igreja" (Concílio de Cartago III (397) e Concílio de Cartago IV (419)).

  • "Tratemos agora sobre o que sente a Igreja Católica universal, bem como o que se dever ter como Sagradas Escrituras: um livro do Gênese, um livro do Êxodo, um livro do Levítico, um livro dos números, um livro do Deuteronômio; um livro de Josué, um livro dos Juízes, um livro de Rute; quatro livros dos Reis13, dois dos Paralipômenos; um livro do Saltério; três livros de Salomão: um dos Provérbios, um do Eclesiastes e um do Cântico dos Cânticos; outros: um da Sabedoria, um do Eclesiástico. Um de Isaías, um de Jeremias com um de Baruc e mais suas Lamentações, um de Ezequiel, um de Daniel; um de Joel, um de Abdias, um de Oséias, um de Amós, um de Miquéias, um de Jonas, um de Naum, um de Habacuc, um de Sofonias, um de Ageu, um de Zacarias, um de Malaquias. Um de Jó, um de Tobias, um de Judite, um de Ester, dois de Esdras, dois dos Macabeus. Um evangelho segundo Mateus, um segundo Marcos, um segundo Lucas, um segundo João. [Epístolas:] a dos Romanos, uma; a dos Coríntios, duas; a dos Efésios, uma; a dos Tessalonicenses, duas; a dos Gálatas, uma; a dos Filipenses, uma; a dos Colossences, uma; a Timóteo, duas; a Tito, uma; a Filemon, uma; aos Hebreus, uma. Apocalipse de João apóstolo; um, Atos dos Apóstolos, um. [Outras epístolas:] de Pedro apóstolo, duas; de Tiago apóstolo, uma; de João apóstolo, uma; do outro João presbítero, duas14; de Judas, o zelota, uma. (Catálogo dos livros sagrados, composto durante o pontificado de São Dâmaso [366-384], no Concílio de Roma de 382)

  • "Quais os livros aceitos no cânon das Escrituras, o breve apêndice o mostra: Cinco livros de Moisés, isto é, Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Um livro de Josué, filho de Num; um livro dos Juízes; quatro livros dos Reinos; e Rute. Dezesseis livros dos Profetas; cinco livros de Salomão; o Saltério. Livros históricos: um de Jó, um de Tobias, um de Ester, um de Judite, dois dos Macabeus, dois de Esdras, dois dos Paralipômenos. Do Novo Testamento: quatro livros dos Evangelhos; quatorze epístolas do apóstolo Paulo, três de João, duas de Pedro, uma de Judas, uma de Tiago; os Atos dos Apóstolos; e o Apocalipse de João" (papa Inocêncio I, 20.02.405; Carta "Consulenti Tibi" a Exupério, bispo de Tolosa). 

  • "Devemos agora tratar das Escrituras Divinas. Vejamos o que a Igreja Católica universalmente aceita e o que deve ser evitado: (1) Começa a ordem do Antigo Testamento: um livro da Gênese, um do Êxodo, um do Levítico, um dos Números, um do Deuteronômio, um de Josué (filho de Nun), um dos Juízes, um de Rute, quatro livros dos Reis, dois dos Paralipômenos, um livro de 150 Salmos, três livros de Salomão (um dos Provérbios, um do Eclesiastes, e um do Cântico dos Cânticos). Ainda um livro da Sabedoria e um do Eclesiástico. (2) A ordem dos Profetas: um livro de Isaías, um de Jeremias com Cinoth (isto é, as suas Lamentações), um livro de Ezequiel, um de Daniel, um de Oséias, um de Amós, um de Miquéias, um de Joel, um de Abdias, um de Jonas, um de Naum, um de Habacuc, um de Sofonias, um de Ageu, um de Zacarias e um de Malaquias. (3) A ordem dos livros históricos: um de Jó, um de Tobias, dois de Esdras, um de Ester, um de Judite e dois dos Macabeus. (4)A ordem das escrituras do Novo Testamento, que a Santa e Católica Igreja Romana aceita e venera são: quatro livros dos Evangelhos (um segundo Mateus, um segundo Marcos, um segundo Lucas e um segundo João). Ainda um livro dos Atos dos Apóstolos. As 14 epístolas de Paulo Apóstolo: uma aos Romanos, duas aos Coríntios, uma aos Efésios, duas aos Tessalonicenses, uma aos Gálatas, uma aos Filipenses, uma aos Colossenses, duas a Timóteo, uma a Tito, uma a Filemon e uma aos Hebreus. Ainda um livro do Apocalipse de João. Ainda sete epístolas canônicas: duas do Apóstolo Pedro, uma do Apóstolo Tiago, uma de João Apóstolo, duas epístolas do outro João (presbítero) e uma de Judas Apóstolo (o zelota)" (papa S. Gelásio, ~495; Decreto Gelasiano; repetido em 520 pelo papa S. Hormisdas. Seguido também pelo Concílio Ecumênico de Florença15 [1438-1445], e novamente ratificado pelos Concílio de Trento16 [1546-1563] e Vaticano I [1870])).




    Outras Fontes:

  • Concílio Regional de Trulos, realizado no ano 692.

1Trata-se dos dois livros de Samuel (1Rs/2Rs) e os dois livros de Reis (3Rs/4Rs).
2Isto é, os dois livros das Crônicas (1Cr/2Cr).
3Ou seja: Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico.
4A saber: Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.
5Incluindo as "Lamentações" e "Baruc", segundo a Septuaginta.
6Isto é, o livro de Esdras e o livro de Neemias.
7Mateus, Marcos, Lucas e João.
8Aos Romanos, duas aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, duas aos Tessalonicenses, duas a Timóteo, a Tito e a Filemon.
9Curiosa distinção resultada, provavelmente, dos escrúpulos que a Igreja Africana tinha a respeito da autenticidade literária paulina dessa epístola.
10Percebe-se, assim, que o cânon coincide perfeitamente com o cânon definido pelo Concílio de Trento.
11Trata-se da Igreja de Roma.
12Alusão ao culto dos santos mártires.
13Os Concílios regionais de Cartago simplesmente repetem, com as mesmas palavras, o conteúdo do cânon 36 do Concílio regional de Hipona. A diferença está somente na conclusão.
14Interessante distinção, já que antiquíssima tradição de Éfeso distinguia o João Apóstolo de um João Presbítero, da mesma região.
15cf. Decreto "Pro Iacobitis" (da Bula "Cantate Domino", de 04.02.1441):
"...O Sacrossanto Concílio professa que um e o mesmo Deus é o autor do Antigo e do Novo Testamento, isto é, da Lei, dos Profetas e do Evangelho, pois os santos de ambos os Testamentos falaram sob a inspiração do mesmo Espírito Santo. Este Concílio aceita e venera os seus livros que vêm indicados pelos títulos seguintes: Cinco livros de Moisés (isto é, Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), Josué, Juízes, Rute, quatro livros dos Reis, dois dos Paralipômenos, Esdras, Neemias, Tobias, Judite, Ester, Jó, o Saltério de Davi, as Parábolas (Provérbios), Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico, Isaías, Jeremias, Baruc, Ezequiel, Daniel, os Doze Profetas menores (isto é, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias) e dois livros dos Macabeus. Quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), catorze epístolas de Paulo (uma aos Romanos, duas aos Coríntios, uma aos Gálatas, uma aos Efésios, uma aos Filipenses, uma aos Colossenses, duas aos Tessalonicenses, duas a Timóteo, uma a Tito, uma a Filemon, uma aos Hebreus), duas epístolas de Pedro, três de João, uma de Tiago, uma de Judas, os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse de João".
16cf. Decreto sobre o Cânon (sessão IV, de 08.04.1546). Fonte: www.veritatis.com.br/agnusdei/
 A COMUNHÃO EUCARÍSTICA RECEBIDA NAS MÃOS

A Comunhão foi ministrada nas mãos dos fiéis até o século IX. Por causa de abusos e profanações, a partir daí a Igreja preferiu ministrar a Comunhão na boca. Depois do Concílio Vaticano II a prática antiga da Comunhão nas mãos foi restaurada, sob certas condições. No dia 3 de abril de 1985 a Sagrada Congregação Para o Culto Divino, publicou a segunte Notificação: 

Protocolo 720/85 
A Santa Sé , a partir de 1969, mantendo sempre em toda a Igreja o uso de distribuir a Comunhão, concede às Conferências Episcopais que o peçam, e em condições determinadas, a faculdade de distribuir a Comunhão na mão dos fiéis. Esta faculdade é regida pelas Instruções Memoriale Domini e Immensae Caritatis (29 de maio de 1969, AAS 61, 1969, 541´546; 29/1/1973, AAS 65, 1973; 264´271) assim como pelo Ritual De Sacra Communione publicado aos 21/6/1973, n.21. Todavia parece útil chamar a atenção para os seguintes pontos:

1. A Comunhão na mão deve manifestar, tanto quanto a Comunhão recebida na boca, o respeito para com a real presença de Cristo na Eucaristia. Por isso será preciso insistir, como faziam os Padres da Igreja, sobre a nobreza dos gestos dos fiéis. Assim, os recém batizados do fim do século IV recebiam a norma de estender as duas mãos fazendo “com a esquerda um trono para a direita, pois esta devia receber o Rei” (5ª Catequese Mistagógica de Jerusalém, n.21; PG 33, Col. 1125; São João Crisóstomo, homilia 47, PG 63,Col. 898, etc.).

2. Seguindo ainda os Padres, será preciso insistir sobre o Amém que o fiel diz em resposta às palavras do ministro: “O Corpo de Cristo”. Este Amém deve ser a afirmação da fé: “Quando pedes a Comunhão, o sacerdote te diz “O Corpo de Cristo”, e tu dizes “Amém”, “é isto mesmo”; o que a língua confessa, conserve´o o afeto” (S. Ambrósio, De Sacramentis 4,25). 

3. O fiel que recebe a Eucaristia na mão, levá´la´á à boca antes de voltar ao seu lugar; apenas se afastará, ficando voltado para o altar, a fim de permitir que se aproxime aquele que o segue.

4. É da Igreja que o fiel recebe a Eucaristia, que é a Comunhão com o Corpo de Cristo e com a Igreja. Eis porque o fiel não deve ele mesmo retirar a partícula de uma bandeja ou de uma cesta, como o faria se se tratasse de pão comum ou mesmo de pão bento, mas ele estende as mãos para receber a partícula do ministro da Comunhão.

5. Recomendar´se´á a todos, especialmente às crianças, a limpeza das mãos, em respeito à Eucaristia.

6. Será preciso previamente ministrar aos fiéis, uma catequese do rito, insistir sobre os sentimentos de adoração e a atitude de respeito que se exige (cf. Dominicae coenae n.11). Recomedar´se´lhes´á que cuidem de que não se percam fragmentos de pão consagrado (cf. Congregação para a Doutrina da Fé, 2/5/1972, Prot.n. 89/71, em Notitiae 1972, p. 227).

7. Os fiéis jamais serão obrigados a adotar a prática da comunhão na mão; ao contrário, ficarão plenamente livres para comungar de um ou de outro modo. Essas normas e as que foram recomendadas pelos documentos da Sé Apostólica atrás citados, têm por finalidade lembrar o dever do respeito para com a Eucaristia independentemente do modo como se recebe a Comunhão. Insistam os pastores de almas não só sobre as disposições necessárias para a recepção frutuosa da Comunhão, que, em certos casos, exige o recurso ao Sacramento da Penitência; recomendem também a atitude exterior de respeito que, em seu conjunto, deve exprimir a fé do cristão na Eucaristia. Da sede da Congregação para o Culto Divino, aos 3 de abril de 1985. († Agostinho Mayer ´ Pró Prefeito; † Virgílio Noé ´ Secretário).


(Transcrito da Revista Pergunte e Responderemos, n º 283, 1985, p.512).

Observação: Em nota publicada no número de março´abril de 1999, no boletim Notitiae, a Congregação Para o Culto Divino reafirmou o que prescreve o n.7 na Notificação acima, respondendo sobre a obrigatoriedade de receber a Comunhão nas mãos:
“Dos documentos da Santa Sé depreende´se claramente que nas dioceses em que o pão eucarístico é depositado nas mãos dos fiéis, a estes fica absolutamente garantido o direito de o receber sobre a língua. Aqueles que obrigam os comungantes a receber a santa Comunhão unicamente nas mãos como também aqueles que recusam aos fiéis a Comunnhão nas mãos nas dioceses que utilizam tal indulto, procedem contrariamente às normas estabelecidas. Segundo as normas referentes à distribuição da Santa Comunhão, estejam os ministros ordinários e extraordinários particularmente atentos a que os fiéis consumam imediatamente a partícula consagrada, de modo que ninguém se afaste com as espécies eucarísticas nas mãos. Em todo caso é para desejar que todos tenham presente que a tradição secular consiste em receber a Comuhão sobre a língua. O sacerdote celebrante, caso exista perigo de sacrilégio, não dê a Comunhão nas mãos dos fiéis e exponha´lhes as razões porque assim procede.”
(Notitiae nº 392.393/1999, transcrito de Pergunte e Responderemos, nº 457, junho de 2000)


SANTAS MISSÕES POPULARES

INTRODUÇÃO

As Santas Missões Populares estão de volta, porque nossas comunidades precisam da graça de Deus, do cuidado dos missionários e das missionárias e da palavra do Evangelho para firmar e fortalecer sua fé e tomar consciência da vocação missionária de todos.

O Conselho Missionário Nacional – COMINA, em sua Assembléia comemorativa de 25 anos, realizada de 6 a 9 de novembro de 1997, na Carta Mensagem, assim se expressou: “É preciso tornar as missões populares, em sua perspectiva de animação e evangelização inculturada, um projeto a ser difundido. Estas missões populares, dentro da mística da nova evangelização, não só criam novo ardor nos missionários, como abrem horizontes mais abrangentes para a evangelização, proporcionando o protagonismo dos leigos – adultos, jovens e crianças”.

É no contexto do Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio” que este Livro, Santas Missões Populares, é oferecido às nossas comunidades. Este tema dá seguimento à proposta das etapas nestes anos em preparação ao Grande Jubileu. A formação de evangelizadores (1997), que foi abordada através do Livro, BOA NOVA JÁ CHEGOU!, continua na proposta das SANTAS MISSÕES POPULARES e terá seu ponto culminante, em 1999, com a MISSÃO ALÉM- FRONTEIRAS.

Este subsídio, substitui o Texto-Base do Mês Missionário, pois deseja-se que a reflexão missionária ultrapasse o período do Outubro Missionário, podendo ser usado durante todo o ano ou na época que parecer mais oportuno à comunidade. São três capítulos e anexos, que abordam:

• Santas Missões Populares: Objetivos e método.

• O Planejamento.

• Espiritualidade das Santas Missões Populares.

• Anexos.

Cada uma destas partes pode ser tema de um dia inteiro de estudo, encontros, retiros... e o conteúdo poderá ser apresentado também em cursos intensivos, ou cursos de duração e periodicidade variadas.

São sugeridas dinâmicas ao longo do texto e apresentamos alguns cantos inspirados também na Campanha Missionária de 1998: “Ele vos ensinará toda a verdade”. São apenas sugestões. Outros podem ser usados e de outras formas e critérios de quem estiver coordenando os trabalhos. A criatividade de cada um indicará outros caminhos para que este subsídio possa ajudar às nossas comunidades a serem cada vez mais decididamente missionárias, pelo testemunho, serviço, diálogo e anúncio, fazendo irmãos e formando comunidades.

Este Texto foi elaborado pelas Equipes do Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio, das Pontifícias Obras Missionárias, da Dimensão Missionária da CNBB e de missionários das Santas Missões Populares do norte e ao sul do país, do leste ao oeste.

As muitas e variadas experiências realizadas e em andamento nos alegram e enchem-nos de esperança. Enquanto hipotecamos nosso apoio, queremos somar forças. São por isso bem-vindas todas as colaborações, sugestões e, principalmente, os relatos de experiências de Santas Missões Populares. Os endereços para esta comunhão e partilha são os das Pontifícias Obras Missionárias e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Brasília – DF, Brasil.

Dinâmicas para a Acolhida, Integração Grupal

Algumas dinâmicas que podem ser usadas no início do encontro para integração dos participantes, “quebra gêlo”, apresentação dos grupos... Quanto mais acontecer “comunidade” mais facilmente os cristãos conseguem testemunhar o anúncio da Boa Nova.

1ª. O sonho

O animador(a) acolhe os participantes partilhando a alegria de iniciar um curso ou uma série de encontros sobre Santas Missões Populares. Convida todos a cantar: “Eu quero ver acontecer” ou outro. Distribui folhas de papel. Uma árvore ou galho é colocado no centro.

1º Passo: Motivar o grupo para sonhar com as Santas Missões Populares. Cada participante, em alguns minutos de silêncio, sonha e expressa este sonho através de um símbolo colado ou desenhado nas folhas de papel distribuídas previamente.

2º Passo: Em grupos (3 ou 4 pessoas), partilham seus sonhos e escolhem uma música que expresse os sonhos do grupo.

3º Passo: Plenário. Cada grupo é convidado a dizer e colocar na árvore os “seus sonhos” e apresentar cada membro: nome e de onde vieram para construir a árvore dos sonhos das Santas Missões Populares. Ao final canta-se o mesmo canto inicial.

2ª. Apresentação - Expectativas

1º Passo: Os participantes são convidados a escolher 2 ou 3 pessoas desconhecidas para um cochicho. Cada uma deve dizer seu nome, onde mora, o que faz e uma expectativa do encontro, ou seja, por que estão vindo.

2º Passo: Após cinco minutos, todos voltam ao plenário. Cada grupo vai apresentar os companheiros(as) e suas expectativas. Entre um e outro grupo pode-se cantar algum refrão conhecido ou canto de boas-vindas.

3ª. Crachás

Distribuir entre os participantes faixas de papel para serem penduradas no pescoço ou crachás grandes. Em cada faixa ou crachá a pessoa escreve o nome de uma personalidade bíblica ou de um missionário(a) conhecido de qualquer Igreja cristã. O nome deverá ser escolhido pela afinidade ou admiração. Assim identificados, as pessoas passeiam pela sala, se encontram e conversam sobre o nome escolhido. O animador(a) convida todos ao plenário. Um companheiro(a)apresenta aquele escolhido. Ao final, todos os nomes são colocados num mural ou num lugar bem visível para deixar visível o nome das pessoas e se ter uma idéia do tipo de missionário(a) que cada um traz no coração.

4ª. Sugestão para avaliação e recapitulação

Será interessante e proveitoso fazer no final de cada encontro um resumo do que foi mais importante. Dizer o que ficou do encontro anterior, os aspectos mais importantes e algum ponto que precise ser melhorado. Uma pessoa começa e convida outra a se expressar. Este exercício pode ser feito também no início do outro encontro. Será muito útil para se perceber como vão sendo assimilados os assuntos, sem ser preciso fazer uma avaliação formal. O fato de um companheiro(a) escolher outro para falar pode facilitar a comunicação com todos, inclusive com os mais tímidos. Algum dia o grupo pode utilizar bonecos, tipo fantoches, para fazer a síntese do encontro. Os bonecos farão o comentário do que foi apresentado, em forma de conversa.

Observação: Outras dinâmicas podem ser utilizadas para facilitar o conhecimento e a integração do grupo.

CAPÍTULO I

AS SANTAS MISSÕES POPULARES: OBJETIVOS E MÉTODO

Por que, de novo, as Santas Missões Populares?

Há alguns anos, em vários pontos do País, especialmente no Norte e no Nordeste, mas também no Sul ou no Oeste, as nossas comunidades sentem desejo de realizar experiências semelhantes às Santas Missões Populares (SMP). E já contamos com inúmeras experiências, as mais variadas, de missões realizadas nos centros e periferias das cidades e em áreas rurais.

Não foi apenas desejo de um ou de outro. Foram várias comunidades e muitos missionários que reconheceram nisso um apelo de Deus, uma necessidade para a Igreja e um meio de se responder aos sinais dos tempos.

Em nosso País, há dois ou três séculos atrás, as Santas Missões Populares, sobretudo no interior, eram necessárias para avivar a fé do povo. Este vivia isolado e sofria a tentação de esfriar sua vida cristã e de perder de vista as grandes verdades da fé, que davam sentido à sua vida e orientavam a sua caminhada.

Hoje, ainda persistem algumas situações parecidas com as de ontem. Em geral, porém, a situação mudou. As pessoas, mesmo tendo muitas informações, vivendo em contato com o mundo inteiro, através da televisão e outros meios de comunicação, permanecem isoladas. O que escutam e vêem, o mais das vezes, é um incentivo a pensar em si mesmas, a desejar um pouco de tudo - principalmente os bens materiais, o bem-estar, “a felicidade de ter” isto ou aquilo - e a se esquecer dos outros, talvez até de Deus. Alguns dizem que nunca houve tanta informação como hoje e tão pouca comunicação entre as pessoas.

É verdade que, em geral, os problemas da vida, as mudanças forçadas de moradia, de emprego, de vizinhança, as doenças e os sofrimentos levam muita gente de volta para Deus. Mas aí também o relacionamento se desgasta: muitos pedem tudo a Deus e, ao mesmo tempo, não estão lá dispostos a buscar a sua vontade! Parece que não vão muito além do “é dando que se recebe”. Dão a Deus para receber de volta, se possível, com vantagem, ou em dobro.

Jesus frequentes vezes comparou a fé com a planta. Ela deve ser semeada, regada, protegida contra pássaros e ervas daninhas; deve receber adubo, sol e chuva, para crescer e dar fruto.

O que são as Santas Missões Populares?

É um jeito, uma iniciativa que uma comunidade toma para firmar e fortalecer sua própria fé e, também, uma maneira de se conscientizar do chamado para sair e evangelizar. É Deus que, para fazer crescer, manda sol e chuva. Os missionários e as missionárias são os que regam, adubam, protegem, cuidam. E, afinal, é a própria planta (a comunidade de fé) que deve crescer, dar fruto e espalhar novas sementes.

Santas: Porque é a mesma missão de Jesus, o Cristo, o Santo, o Consagrado, o Ungido pelo Espírito Santo. “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para envangelizar os pobres; enviou-me para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). Santas porque são um tempo de graça, “tempo favorável por excelência, o dia da salvação” (2Cor 6,2).

Missões: Porque é um tempo de andar, de sair, de ser enviado, não para transmitir um conhecimento doutrinário-teórico sobre Deus. É, sim, um tempo especial da graça de testemunhar a experiência pessoal, íntima, filial de Deus. Como Jesus que “exultou de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21).

Porque missão não é, primeiramente, algo que se possui ou tarefa a realizar, mas é vida, experiência de Deus, que é vida vivida em comunhão. Missão é viver em comunhão. A Missão é necessária porque há ainda muitas pessoas excluídas do Banquete do Reino de Deus, da Festa (cf. Lc 14,15-24).

Populares: Porque elas acontecem no meio do povo, com o povo e a partir dos anseios e clamores do povo, sobretudo dos excluídos e marginalizados, que lutam por mais vida, dignidade, fé, esperança e vida de comunhão.

Porque Jesus assim fez: “Percorria todas as cidades e povoados ensinando nas sinagogas e pregando o Evangelho do Reino, enquanto curava toda sorte de doenças e enfermidades. Ao ver a multidão teve compaixão... Pedi, pois, ao Senhor da colheita que envie operários” (Mt 9,35-38).

Populares porque o povo, homens e mulheres, jovens e crianças, é convidado a ser o sujeito histórico desta mesma missão. Populares porque todos são convidados à conversão de vida e para a transformação segundo as opções de Jesus no Sermão da Montanha: “Felizes, bem-aventurados... porque vosso é o Reino de Deus” (Lc. 6,20s).

As Santas Missões Populares inspiram-se, sobretudo, no ministério de Jesus na Galiléia, tanto nos conteúdos e na pedagogia como nas atitudes.

As Santas Missões Populares voltam de novo, porque nossas comunidades precisam da graça de Deus, do cuidado dos missionários, da palavra do Evangelho e da retomada da opção cristã pelo povo face a tantas dificuldades no mundo de hoje.

O Jubileu

O fato de voltar não é uma novidade. Já na Bíblia, nos livros mais antigos, Deus falava a seu povo da necessidade de deixar descansar a terra, pelo menos uma vez a cada sete anos, e de renovar a vida de toda a comunidade, voltando ao que Deus tinha estabelecido de início, uma vez a cada sete vezes sete (= 49) anos. Daí que o ano “cinqüenta” passava a ser ano do jubileu. Nesse ano se devolvia a terra à família a que pertencia no início da história do povo de Deus. Eram libertados todos aqueles que tinham virado escravos, perdendo a própria liberdade (cf. Lv 25, 1-17). O próprio Jesus, quando quis explicar sua missão aos habitantes de Nazaré, usou esta comparação: “Eu vim, guiado pelo Espírito de Deus, para proclamar o ano do jubileu, o ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-19).

Há um programa mais bonito, neste final de século, para as nossas comunidades cristãs, do que este? Nossa missão é continuar o programa de Jesus. Estamos dispostos a anunciar que Deus perdoa todas as dívidas para com Ele? Vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para acolher e conquistar o Dom da liberdade e da alegria para nós e para nossos irmãos?

Como fazer?

Há muitos modos de realizar as Santas Missões Populares. A novidade não é celebrá-las. A novidade é celebrá-las de forma nova, de tal modo que realmente correspondam às necessidades de cada comunidade hoje. Aliás, também Jesus insistia sobre isto: “o que acabastes de ouvir está se realizando hoje” (Lc 4, 21).

Por serem diversas as situações, cada comunidade deverá procurar realizar as Santas Missões conforme suas necessidades e objetivos, seus recursos, sua criatividade, na docilidade ao que o Espírito de Deus lhe soprar.

Os objetivos, a espiritualidade e o método conservam o mesmo fundamento. A partir da experiência das comunidades, vamos apresentar o que nos parece essencial e básico sobre os objetivos e método, planejamento, espiritualidade e sugestões.

DINÂMICA

Cochicho a dois: Recordar e contar experiências vividas de Santas Missões Populares, destacando aspectos que marcaram nossa vida cristã e a de nossa comunidade.

(O animador, animadora anota as palavras chaves que serão retomadas no decorrer dos demais encontros).

1) Objetivos

Em todo o projeto ou atividade, o mais importante é definir com clareza os objetivos, ou seja, onde se quer chegar.

As Santas Missões Populares têm o objetivo primeiro de pôr em prática a vontade de Deus, que se expressa hoje pela palavra de Jesus e pelos acontecimentos da vida. Fundamental é a docilidade ao Espírito, que precede nosso agir e nos ajuda a compreender o que o Pai quer para o nosso bem, que tenhamos “vida em plenitude” (Jo 10,10). Essa intenção fundamental se traduz num caminho que cada um de nós deve percorrer e partilhar com os outros:

1º) Experimentar a presença de Deus na própria vida; valorizar o dom da vida que recebeu; dar sentido às suas experiências;

2º) Voltar-se para Jesus, para nele descobrir o verdadeiro rosto de Deus, Pai e Mãe que nos ama; para aprender a olhar a vida e as pessoas com o olhar de Jesus; para acolher os outros como Ele acolhia; para seguir o seu caminho;

3º) Renovar a vida da comunidade cristã:

- aproximando-a do seu ideal de viver como as comunidades dos apóstolos (cf. At 2, 42-47; Rm 12, 1-21);

- corrigindo seus defeitos e infidelidades (cf. 1 Cor 11, 17-34);

- tornando-a um lugar de referência para a vida das pessoas, reconhecido como a “carta de Deus” enviada à humanidade (cf. 2 Cor 3, 3) e como um lugar onde o próprio Deus está e se deixa encontrar (cf. 1 Cor 14, 25).

4º) Enviar missionários para encontrar os irmãos que vivem no mundo, empenhados no trabalho e na edificação da cidade terrestre, tarefas que Deus abençoa, mas que, tantas vezes, são perturbadas pelo egoísmo e injustiça, gerando a opressão dos fracos ou, sempre mais freqüentemente hoje, a exclusão dos pobres.

5º) Testemunhar a solidariedade com todos, procurando servir aos que necessitam e trazendo para a comunidade cristã as interrogações, os anseios e os ideais de quem luta por um mundo mais justo e fraterno.

6º) Anunciar, com alegria, a Boa Nova de Jesus que liberta, educa e traz felicidade.

A compreensão deste objetivo e dos que a comunidade se propõe e destes passos, sua mística e espiritualidade é tão importante que dedicamos todo o capítulo III deste livro. Esclarecemos, porém, desde já, que os objetivos das Santas Missões Populares não constituem algo paralelo aos objetivos da ação pastoral e evangelizadora da Igreja. As Missões procuram viver de modo mais intenso e renovado esses mesmos objetivos. Elas devem ser assumidas por toda a comunidade eclesial.

DINÂMICAS:

1. Em pequenos grupos, escrever, em poucas palavras, os objetivos das Santas Missões Populares. Colocar num papelógrafo e afixar no quadro. A assembléia discute, questiona e complementa.

2. Dramatizar alguns dos objetivos das Santas Missões Populares.

3. Reler o Objetivo Geral da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil

2) Método

Método é o caminho para chegar aos objetivos propostos. A Igreja se inspira no método de Jesus , que foi enviado, como missionário, pelo Pai. E Ele foi ao encontro dos que o procuravam, de quem estava disperso, desorientado, sem saber a quem procurar, “como ovelhas sem pastor” (cf. Mc 6, 34). Dirigiu-se, também, “a outros lugares” (Mt 1,38).

Nossas Santas Missões Populares têm o mesmo objetivo: ir ao encontro dos irmãos e irmãs, sem distinção entre os que freqüentam a Igreja e os que não a procuram, os que estão perto ou longe. Como Jesus, vamos ao encontro de todos para partilhar a Boa Nova e demonstrar que Deus ama cada um, como filho e filha, independentemente dele estar em sua casa ou dela tenha se afastado (cf. Lc 15,11-32). Deus - dizia Jesus - manda sol e chuva “tanto para os bons quanto para os maus” (cf. Mt 5,45). Quem é mesmo bom ou mau, só Deus sabe: só ele lê o íntimo dos corações (cf. Mt 6,4.6.8.18).

Jesus vai ao encontro de cada pessoa e procura levar cada uma à fé, isto é, à descoberta do amor de Deus para com ela própria e à confiança neste amor. Jesus faz isto pela atitude de acolhida a cada pessoa e pelo diálogo com ela.

Vamos considerar, como exemplo, o método, o caminho utilizado por Jesus no diálogo com a Samaritana. O evangelista João conta este caso como modelo da atitude de Jesus para com o povo, mesmo aquele povo que está afastado do Deus verdadeiro e o trai buscando ídolos diferentes (os “cinco maridos” da Samaritana). O relato de João (cap. 4) é um exemplo de como se pode chegar, por Jesus, à fé no Deus que nos ama.

O diálogo com a mulher da Samaria começa com um pedido que valoriza o que ela tem: a água. Mas logo passa a mostrar que, na busca da água, tanto Jesus como a Samaritana procuram algo mais. De fato, nosso desejo é infinito e nosso coração continua inquieto até que não encontre definitivamente o Infinito, o Absoluto, o que é Tudo, o que podemos desejar e amar: Deus. Para chegar lá, porém, é necessário ir além dos nossos projetos imediatos, do que amamos que são pálidas imagens d’Aquele que procuramos. A Samaritana, que tinha trocado cinco maridos (ou o povo da Samaria que tinha adorado cinco ídolos diferentes), é o retrato da humanidade de hoje, de todos nós, que procuramos tantas coisas - talvez bonitas, mas pequenas e passageiras - e nos deixamos distrair ou enganar por elas.

A Samaritana é também um exemplo de quem, sentindo-se compreendido por Jesus, decide abandonar seus ídolos e abrir o coração ao Deus verdadeiro, que desejava, talvez sem percebê-lo com clareza. “Ele me disse tudo o que eu fiz (e procurei)”, diz ela aos seus conterrâneos, para descrever sua descoberta e sua mudança de vida. Pois, agora, para ela começa uma VIDA NOVA.

Jesus descreveu esta mudança numa parábola muito simples. “O Reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo. Um homem o acha e o torna a esconder e, na sua alegria, vai e vende tudo o que possui e compra aquele campo” (Mt 13, 44).

O que Jesus quis dizer com isso? A descoberta do Deus verdadeiro - ou de quem Deus é realmente - é para Jesus uma alegria muito grande, semelhante àquela de quem descobre e adquire um tesouro .

O método das missões é um caminho para cada um descobrir uma maneira nova de VIVER, a partir da descoberta do Deus verdadeiro, que nos ama. Certamente a maioria das pessoas ainda não descobriu isto. Mas mesmo aqueles que já descobriram o Deus de Jesus, nem sempre perceberam todas as conseqüências disso para a sua vida. Não descobriram plenamente a felicidade do encontro com o Deus que nos ama.

Então as Santas Missões Populares, a partir dessa descoberta, querem ajudar a ver mais longe e a experimentar a VIDA NOVA que Jesus nos trouxe.

Isto será feito numa caminhada em grupo ou na comunidade, em que cada um poderá partilhar com os outros suas descobertas, enxergar melhor as novas perspectivas de vida e deixar transbordar sua alegria, de modo que também outros - que não participam do grupo ou da comunidade - possam encontrar Jesus e, com Ele, o amor de Deus.

DINÂMICAS:

O animador, animadora motiva o grupo a realizar alguma destas atividades ou as distribui nos diferentes grupos.

1. Quais os passos de Jesus para ajudar a Samaritana a se converter?

2. Encenar o encontro de Jesus com a Samaritana.

3. Encenar a Parábola do tesouro escondido.

4. Refletir como as Santas Missões Populares podem ajudar na descoberta de uma VIDA NOVA.

CAPÍTULO II

O PLANEJAMENTO

Planejamento é a atividade conjunta de preparação para se atingir os objetivos por meio de métodos adequados.

Uma estória:

Certa vez, dois homens chegaram a uma ilha. Eles tinham ouvido dizer que durante a guerra, alguns soldados, utilizando um caminhão do exército, tinham enterrado um fabuloso tesouro no fim de uma das diversas estradas dessa ilha. Ambos decidiram que seria ótimo achar esse tesouro. Mas cada um decidiu isso individualmente, sem nada falar um com o outro. O primeiro pegou uma pá e correu a ilha toda, cavando e procurando em todos os lugares possíveis. Ele explorou embaixo das pedras, cavou junto aos troncos das árvores e até nos gramados tentou a sorte. Cavou muito sem achar nada.

O segundo sentou-se e pensou que, primeiro, deveria conhecer todas as estradas da ilha. Resolveu, então, fazer um mapa. Com este mapa ele tinha todas as possibilidades de chegar ao tesouro. Analisou, em seguida, as possibilidades eliminando as estradas muito estreitas para a bitola de um caminhão; eliminou, também, as que tinham gargantas com rochas que se projetavam sobre o caminhão não permitindo sua passagem. Depois, inspecionou as possibilidades restantes e eliminou as estradas que terminavam com extensas áreas de granito, onde os homens não poderiam ter cavado. Ficou, então, apenas com duas estradas possíveis. Primeiro criou todas as possibilidades. Depois eliminou todas as que não preenchiam os requisitos básicos.

Cavou no fim da primeira estrada e não achou o desejado tesouro, que foi encontrado no fim da segunda estrada. Enquanto isso seu amigo... estava pulando de um lugar para outro na ilha, tentando, aqui e acolá, freneticamente, encontrar a solução de seu problema.

O que essa estória de Bernardo S. Berson nos diz sobre objetivos, método e planejamento e como aplicá-los à Santas Missões Populares?

Para realizar as Santas Missões Populares, é preciso que um grupo ou equipe de cristãos, convencidos de que vale a pena ser missionário , as organize. Elas necessitam ser organizadas conjuntamente numa diocese ou numa paróquia. Damos, como sugestão, aqui o planejamento realizado por uma comunidade.

Planejar é preciso

O plano poderia prever quatro etapas, precedidas por uma fase inicial em que se amadurece a decisão de organizar a missão e se preparam os missionários . Nessa fase inicial de preparação, o grupo que assume a responsabilidade de promover as Santas Missões Populares se reúne, com o apoio e aprovação da direção da comunidade (Conselho Comunitário, pároco, bispo...). Pois as Santas Missões Populares devem mobilizar toda a comunidade e se tornar o eixo de toda a ação pastoral e evangelizadora. É desejável que todas as pastorais, associações e movimentos se envolvam na realização das Missões.

A equipe ou comissão de coordenação deve, primeiramente, estudar este livro ou outro semelhante e, se puder, convidar alguém que já fez a experiência das Santas Missões Populares em outra paróquia ou comunidade para ouvi-lo e questioná-lo. Tomada a decisão, a equipe estabelece objetivos e traça um primeiro esboço do seu plano de ação, incluindo as quatro etapas . É muito importante desenvolver um plano de divulgação das Santas Missões Populares em todos os meios e ambientes (Rádios, folhetos, autdoors, slogans, faixas, TV, Boletins, imprensa....).

O plano de ação deve ser flexível, não muito detalhado, porque a cada etapa será avaliado e redefinido, com base no levantamento dos anseios do povo e de suas expectativas ou necessidades. A fase inicial também não deve ser apressada. Somente quando o grupo responsável está firmemente convencido por meio de encontros de formação e de espiritualidade, parte para a ação. E a primeira coisa que deve fazer é convidar e preparar os missionários, adultos, jovens e crianças. São estas pessoas que vão realizar as visitas, na primeira etapa das Missões e, depois, com a ajuda de outros, continuam todo o trabalho, até o fim. Esta fase de preparação pode durar dois ou três meses, conforme a disponibilidade de tempo do grupo e sua capacidade de assimilar os objetivos, o método, a mística e a espiritualidade das Santas Missões Populares.

Primeira e Segunda Etapas

A primeira etapa consiste nas visitas que os missionários irão fazendo, de preferência, dois a dois, como Jesus enviou seus discípulos . Eles visitarão pessoas e famílias, possivelmente todas as da comunidade ou do bairro envolvido, anunciando as Santas Missões Populares e perguntando às pessoas se estão dispostas a participar de alguns encontros de grupo, em preparação às mesmas Missões. Estes grupos encontrar-se-ão para buscar no Evangelho de Jesus uma luz para a sua vida e compreender melhor o amor de Deus para conosco e suas exigências. Estas reuniões poderão ter como tema as experiências religiosas do grupo ou seguir um subsídio, que oferece trechos do Evangelho para iluminar a reflexão (cf. Anexo 3: Ao encontro com o Jesus vivo).

A primeira etapa pode durar três meses. Nela os missionários devem anotar os principais problemas humanos que vão emergindo, para levá-los em conta nas etapas seguintes.

Na segunda etapa, os missionários devem reunir-se para colocar em comum a experiência que fizeram, resolver dúvidas e dificuldades, começar a planejar a terceira e a quarta etapas.

Este planejamento pode ser dividido em duas partes:

1ª) Um grupo de missionários e de missionárias prepara a terceira etapa, inclusive seu anúncio e divulgação. É bom que se faça uma nova visita a todas as casas, para convidar, pessoalmente, a todos a participar das grandes celebrações da Reconciliação e Vida Nova.

É importante levar um folheto com data e local destas celebrações e deixar na casa uma mensagem. De acordo com a necessidade, realizar uma bênção: da casa, da família, das crianças, dos doentes, das plantações...

2ª) Outro grupo de missionários e de missionárias prepara a quarta etapa. Este trabalho é mais exigente! Trata-se de compreender, a partir das visitas feitas, o que as pessoas estão esperando e necessitando. Os anseios e as necessidades se colocam em diversos planos. Algumas comunidades terão necessidades materiais (limpeza do bairro, construção de salão comunitário ou de casas, consertos de ruas e esgotos etc.). Outros sentem a falta de uma melhor organização da vida espiritual (grupos de oração, liturgia...).

Trata-se de organizar grupos dispostos a fazer gratuitamente, em mutirão, estes trabalhos ou serviços. Outras pessoas estão querendo uma ajuda espiritual: grupo ou escola de oração, círculos bíblicos ou grupos de reflexão do Evangelho, rezas, equipes litúrgicas. Outros grupos podem refletir sobre o Evangelho do domingo e participar do projeto de evangelização “Rumo ao Novo Milênio”, usando o subsídio “Vivendo o Evangelho do domingo” (ou outros). Outros, ainda, estão dispostos a visitar e assistir regularmente doentes, idosos, famílias necessitadas, crianças... Os missionários devem escolher as tarefas mais urgentes e para as quais esperam reunir pessoas dispostas a se comprometer. O compromisso será assumido diante da comunidade na terceira etapa e cumprido ao longo da quarta etapa (que durará um ano).

Como é a Terceira Etapa?

A terceira etapa é o momento central da Missão. É o momento mais parecido com as tradicionais Missões Populares.

É uma etapa curta e intensa, em que se proclama o “Ano da graça” do Senhor, e celebra-se o perdão dos pecados, a libertação de nossas escravidões, a reconciliação com Deus e os irmãos.

É o momento maior da explicitação do Senhor Jesus, Revelador do Pai, o Deus de Jesus que se manifestou a Israel e está presente em todos os povos ao longo da história.

Jesus Salvador. Jesus torna-se o portador junto do Pai do clamor de todos por amor, verdade e justiça. Só através de Jesus, pode morrer em nós o pecado, marca de perturbação ou de ruptura da comunhão entre nós, com Deus e com a natureza.

Jesus Libertador. Nos constitui construtores, com Ele, de um mundo novo, de uma sociedade livre, na verdade, no amor e na justiça do Reino. Jesus quer contar conosco. Envia-nos a todas as nações para fazer irmãos e formar comunidades (Mt 28,18-20).

A terceira etapa é, também, um momento de festa marcante, que não deve ser esquecido tão cedo. E é um tempo, também, de assumir o compromisso de viver uma VIDA NOVA de confiança em Deus e de fraternidade e solidariedade.

As Santas Missões Populares nas diversas realidades

Dependendo do lugar e das suas tradições, haverá muitos modos de celebrar esta terceira etapa. O povo gosta de festejar e inaugurar uma época nova em sua vida.

- No interior rural, a festa pode durar uma semana (numa data em que os trabalhos agrícolas estejam menos pesados e o povo possa se reunir com mais freqüência). Cada dia pode ter - pela manhã e à noite - uma caminhada, reflexão e uma celebração, sempre ao redor de um tema que se quer salientar: a reconciliação entre as pessoas, a libertação dos vícios pessoais, a expressão da solidariedade, o louvor e a ação de graças a Deus, pelas maravilhas operadas, os compromissos a serem assumidos... As celebrações serão ricas em gestos, símbolos e encenações. Poderá haver barraquinhas e folguedos, e outros momentos de confraternização. Pode haver uma peregrinação ou caminhada ou celebração mais solene no fim, etc.

- Nas periferias urbanas, onde o povo trabalha durante a semana toda, a festa pode ser distribuída em vários fins de semana: um pode ser marcado pela celebração da Reconciliação, uma caminhada ou uma peregrinação a um santuário; outro pode ser mais festivo, com festa(s) de rua, barraquinhas e uma celebração mais alegre e caprichada no domingo, de louvor e ação de graças ao Deus que nos ama; outro pode ser o fim de semana em que cada um assume seu compromisso para o ano, integrando-se num grupo de oração, de reflexão sobre o Evangelho, de “mutirão voluntário” para prestar serviços aos mais fracos (doentes, idosos, pobres, crianças abandonadas...) ou construir obras para a comunidade (salão comunitário, casas, conserto de rua e de esgotos...). Pode-se colocar a “primeira pedra” destas obras, se for possível.

- Nos centros e bairros urbanos ou de classe média, também, a terceira etapa será distribuída em vários momentos e será realizada dentro do estilo que os habitantes do bairro preferem. Não faltarão momentos de reconciliação (por exemplo, num retiro ou numa vigília de algumas horas na igreja paroquial, ou em outros locais, talvez no sábado), momentos de oração e confraternização e momentos de compromisso (como o de participar de grupos ou de encontros espirituais periódicos ou de engajamento em atividades de solidariedade).

É importante envolver as escolas, universidade e profissionais liberais no processo das Santas Missões Populares, em todas as etapas. Certamente estes ambientes exigirão da Equipe Coordenadora novas estratégias e métodos apropriados a estas categorias, em suas diferentes situações culturais.

Algumas experiências têm demonstrado que também nesses meios as SMP despertaram missionários e missionárias que se organizaram e continuam atuando na realidade onde vivem e trabalham.

Também as experiências de “Missão Jovem”, espalhadas em todo o Brasil, comprovam a força profética e evangelizadora no meio juvenil.

Pode-se pensar num símbolo forte para o final das Santas Missões Populares.

Costumava-se, em outros tempos, no final das Santas Missões, plantar um grande cruzeiro, com uma placa que lembrava o acontecimento e o ano deste acontecimento.

Agora, como várias comunidades vêm fazendo, a celebração das Missões pode ser lembrada com obras e placas que assinalam as realizações de solidariedade, fruto das Santas Missões Populares: a construção do salão comunitário, a reforma da “casa da farinha”, a construção de casas para os sem-teto ou de um posto de saúde. Em outros casos, lembrar-se-á a fundação de grupos de oração, círculos bíblicos, grupos de reflexão e serviços: Comissões de Justiça e Paz, Direitos Humanos, Comitês contra a violência e as drogas, Grupos de Jovens, de Terceira idade, de Apoio a aidéticos e deficientes e dependentes químicos, Grupos de Infância Missionária etc.

A terceira etapa é o momento do compromisso de fazer do ano que começa um ano de transformação da realidade, marcada pelo pecado (injustiça, ódio, falta de misericórdia e de solidariedade...), numa VIDA NOVA, banhada na graça de Deus, carregada dos frutos de justiça, amor, bondade, solidariedade, paz.

Como realizar a Quarta Etapa?

A quarta etapa, Ano de Vida Nova, terá mais ou menos a duração de um ano. Será concluída, inclusive, com a celebração solene do aniversário das Santas Missões Populares. Ela é a colocação em prática do que as Santas Missões Populares significaram na sua preparação e realização.

É um ano em que as pessoas - todas - devem experimentar o amor de Deus, o perdão, a reconciliação, e se sentirem mais felizes. É um “ano da graça” mais alegre e abençoado que os outros . É um ano em que as pessoas devem melhorar seu relacionamento com os outros e, por isso, reconciliar-se, superando realmente desavenças, cuidando com mais amor do seu próximo, criando novos relacionamentos que enriqueçam espiritualmente as pessoas. É um ano em que as pessoas, dentro de suas possibilidades, procuram crescer na experiência de Deus, na fidelidade ao Evangelho e na solidariedade ativa com os outros (capacidade de partilhar e doar, de ajudar e servir). Os missionários, as missionárias e as comunidades devem promover ou organizar oportunidades para tudo isso, sempre com a preocupação de responder às necessidades de cada um ou dos grupos que se constituem por afinidade conforme indicações feitas.

Haverá também pessoas que não poderão ou terão dificuldades de assumir compromissos ou participar de grupos. Ao longo do ano, os missionários deverão - discretamente - visitá-los ou convidá-los para algum encontro ou celebração que avive a memória das Santas Missões Populares, e lhes faça sentir que, mesmo afastados, a comunidade eclesial não deixa de considerá-los irmãos, de rezar por eles, de estimulá-los a manter a alegria de viver a esperança e a confiança no amor de Deus para com todos, sem exceção.

Os missionários também terão a responsabilidade de se solidarizar com as pessoas que, na sociedade, lutam pela justiça e pelos direitos humanos, procurando apoiá-los, na medida do possível. Terão especial e preferencial cuidado para com as pessoas mais carentes, os marginalizados, os excluídos.

Não esqueçamos que o Espírito de Deus não age só na comunidade eclesial ou pelos sacramentos. Ele está no coração de todos, mesmo daqueles que, por diversos motivos, não se aproximam de nossa comunidade. Deus sabe a hora em que isso poderá acontecer. O próprio Jesus mostrou que não só os judeus piedosos tinham fé e amor, mas também os publicanos (cf. Lc 18, 9-14), os samaritanos (cf. Jo 4, 1-42; Lc 10, 25-37) e os pagãos (cf. Mt 8, 5-13; Lc 7, 1-10; Jo 4, 43-54). O missionário se alegra quando encontra sinais da presença do Espírito onde não esperava, pois “o Espírito sopra onde quer” (Jo 3, 8).

Sugestões de Atividades:

1. Promover um grande encontro para que as pessoas possam testemunhar suas realizações, avanços, conquistas, desafios, atendendo e valorizando as pequenas iniciativas de serviço e de solidariedade previstas e programadas no final da terceira etapa. (cf. “Perseverança confiante”, no livro “Boa Nova já chegou!” p. 24).

2. Oportunizar momentos de oração, onde as pessoas possam testemunhar e louvar a Deus pelo crescimento espiritual e comunitário e pelos compromissos segundo os objetivos das Santas Missões Populares.

3. Divulgar, através de Boletim, folhetos, programas de rádio... os frutos das Santas Missões Populares.

4. Como as Santas Missões estão suscitando e formando novas vocações missionárias?

QUADRO – RESUMO
DO PLANEJAMENTO DAS SANTAS MISSÕES POPULARES

1.PREPARAÇÃO

• Decisão de realizar e organizar as Santas Missões Populares.

• Constituição da equipe de coordenação e de outros grupos de trabalho / formação.

• Discussão, definição de objetivos e elaboração das linhas gerais do plano de ação.

• Formação dos elementos da Equipe de coordenação e dos grupos de trabalho.

• Equipe de divulgação e plano de divulgação.

• Convite e preparação dos missionários e missionárias, adultos, jovens e crianças.

Tanto tempo quanto necessário.

2 ou 3 meses

2. REALIZAÇÃO

Primeira etapa:

• Visitas às pessoas, famílias... e proposta de 4 encontros sobre o tema: “Ao Encontro com o Jesus vivo”.

3 ou 4 meses

Segunda etapa:

• Avaliação das visitas e levantamento das necessidades da comunidade.

• Planejamento da Terceira e quarta etapas, com a formação de grupos de serviços.

• Visita às famílias para convidá-las para as celebrações da terceira etapa
2 ou 3 meses

Terceira etapa:

• Ter presente as diversas realidades (urbano, periferia, rural) e ambientes (Escolas, Universidades, profissionais liberais...)

• Celebrações de Reconciliação, Louvor...

• Confraternizações, Compromissos e proclamação do Senhor Jesus.

Uma semana intensiva ou 3 a 4 fins de semana

Quarta etapa: “Ano da Graça”

• Grupos de solidariedade.

• Mutirões para realizar obras comunitárias.

• Grupos de oração, círculos bíblicos, grupos de reflexão, PRNM...

• Grupos/pessoas que visitam regularmente doentes, idosos, carentes.

• Visitas dos missionários às pessoas que não participam dos grupos.

• Celebração do primeiro aniversário das Santas Missões Populares.

Um ano; termina com a celebração do 1º aniversário das Santas Missões Populares
CAPITULO III

A ESPIRITUALIDADE DAS SANTAS MISSÕES POPULARES

Sem a mística, as Santas Missões Populares correm o risco de serem reduzidas a uma técnica ou estratégias pastorais. Ainda que o abandono de muitos irmãos e irmãs de nossa Igreja nos entristeça, devemos vencer toda e qualquer tentação de proselitismo. Esta atitude contraria não só o espírito das Santas Missões Populares, como também o do Projeto de Evangelização da Igreja no Brasil “Rumo ao Novo Milênio” que contempla o ecumenismo e o diálogo inter-religioso e, sobretudo, do próprio Evangelho.

Este capítulo quer ser uma oportunidade para as comunidades e os missionários refletirem sobre a mística do projeto das Santas Missões Populares. Apresenta quatro passos distintos, mas profundamente entrelaçados, que servirão como um roteiro espiritual àqueles que, com audácia evangélica, assumem o desafio de anunciar e testemunhar a Boa Nova.

Dinâmicas para introduzir o tema

1ª. Duplas e Quartetos

O animador(a) solicita que todos os membros do grupo se observem atentamente durante um minuto, sem conversar. Solicita que cada um forme dupla com uma pessoa que lhe inspire confiança. Durante cinco ou seis minutos cada um fala sobre si, respondendo da forma mais abrangente possível as afirmações da folha anexa:

• O acontecimento mais feliz de minha vida foi....

• Minha decisão mais importante foi quando...

• A coisa que mais me magoa é ....

• O que mais gosto em mim é ....

• Um pessoa que me marcou muito foi ....

• Minha maior devoção é ... Por quê? ...

• Minha primeira lembrança da Bíblia foi ...

• Tive uma forte experiência da Eucaristia...

• O trabalho apostólico que mais gosto de realizar é ...

Após esta apresentação, o animador(a) reúne cada duas duplas formando quartetos. Os quartetos podem ser constituídos pelo animador(a) ou formar-se espontaneamente. Formados os quartetos, o elemento “A” de uma das duplas apresenta a pessoa “B”, e este o “A”. Isso feito, a outra dupla procede da mesma forma, apresentando-se também.

Concluídas as apresentações, todos voltam aos seus lugares. O animador(a) convida a quem quiser, espontaneamente, responder às questões:

• Quais os sentimentos que vivenciamos no grupo?

• O que descobrimos de “novo” com a partilha de nossas vidas?

• O que aprendemos com este exercício ou dinâmica?

2ª. Chamados por Deus

Escrever numa faixa ou cartaz: “Não fostes vós que me escolheste...”

O animador(a) orienta os participantes a formar grupos de 5 ou 6 pessoas para expressar os momentos da própria vida em que se sentiram chamados, amados e escolhidos por Deus.

Em plenário os grupos relatam suas experiências.

3ª. Experiências de Deus

Em pequenos grupos, compartilhar as experiências de Deus que mais marcaram a vida dos participantes.

Se o grupo for muito grande o animador(a) chama um grupo para se apresentar. Este grupo escolhe outro para que possa se apresentar também. Se houver tempo suficiente, todos os grupos se apresentam.

4ª. A luz da fé

Toma-se um vidro transparente com tampa. Abre-se e coloca-se, dentro dele, uma vela acesa. Fecha-se o vidro e presta-se atenção ao que acontece.

(Questionar a assembléia ou grupo e comentar, uma pergunta após a outra).

1) O que aconteceu?

2) Por que a vela se apagou?

3) Que comparação podemos fazer com essa dinâmica e nossa vivência de fé?

4) Qual a mensagem (lição) que podemos tirar para nossa vida?

5ª. Cristãos e a Comunidade

(Distribuir com antecedência, várias velas apagadas para a assembléia. Convida-se três pessoas que serão os artistas e representam três tipos de cristãos).

O animador(a) motiva a assembléia para prestar atenção no que vai acontecer e sentir em qual das cenas cada um se identifica mais. Os artistas fazem uma cena após a outra.

O primeiro personagem, necessita agir de tal forma que choque a assembléia.

1ª Cena: Sai um personagem de um lugar onde o povo não enxerga. Vem com a vela acesa, pode cantarolar uma música profana. Chega em frente à assembléia, olha para a vela com ironia e diz em tom forte: “Essa vela eu recebi no batismo, mas não tem sentido para minha vida... Não quero saber de Jesus Cristo, isso para mim é alguém ultrapassado, também, não quero saber de comunidade, oração, grupos, Igreja, etc. (Pode dizer essas palavras ou outras que representam rejeição da fé).

Após terminar a fala, joga a vela com toda a força no chão e se coloca em um lugar solitário. (Representa a pessoa revoltada. Aquela que não quer nada com Jesus, com a fé. Recebeu a luz, mas deixou-a apagar-se).

2ª Cena: Vem outro personagem com a vela acesa. Mostra a vela para a comunidade e vira-se de costas para o público. Vai em frente a um Santo ou Santa, fica segurando sua vela acesa. (Representa a fé individualista. Eu e meu Deus. Reza em casa, não precisa de comunidade).

3ª Cena: Chega em frente à assembléia o terceiro personagem, com a vela acesa. Olha para sua vela e, em silêncio, distribui a luz às pessoas que estão com as velas nas mãos. Essa pessoa se coloca no meio do povo. (Representa a pessoa aberta, que reparte sua luz, é presença viva na comunidade).

O coordenador questiona a assembléia sobre o que aconteceu e desafia a todos para o compromisso de recuperar os que estão revoltados, afastados, os que estão vivendo no individualismo, etc.

6ª. Encenação

Encenar uma visita às famílias em preparação às Santas Missões Populares, no interior (rural), numa periferia urbana, bairro central, escola, casa de comércio, bar... Os grupos são sorteados. A apresentação pode ser de maneira criativa.

Em todas as dinâmicas ou exercícios, o animador(a) ficará atento a todas as respostas, principalmente àquelas onde aparecem as questões do sentido da vida, das experiências profundas e do exercício do respeito e escuta pois “escutar é uma busca para encontrar o tesouro da pessoa verdadeira, que se revela verbalmente e não verbalmente”.

1. Descobrir o sentido da vida

1) Vivências e experiências. O Espírito Santo nos precede em todo e qualquer empreendimento evangelizador. Esta convicção nos motiva a irmos ao encontro das pessoas onde elas estão, mergulhadas no seu dia-a-dia, no seu fazer diário e aí, nas experiências humanas, descobrirmos a ação maravilhosa e misteriosa do Espírito.

Antes de mais nada, cabe uma palavra sobre a diferença entre experiências e vivências. Todos têm vivências; uns em grau mais forte, outros mais ameno. As vivências da dor e da alegria, das vitórias e dos fracassos estão presentes na vida de cada um. Porém, nem todos conseguem transformar estas vivências em verdadeiras experiências. Isto é, experiência é uma vivência refletida, assimilada. Ora, nem todos se dão conta da profundidade do momento e dos acontecimentos nos quais estão envolvidos. Isto poderá emergir do exercício de contar sua própria vida, de falar de suas vivências, transformando-as em fecundas experiências. Quando alguém relata uma experiência, no mínimo já passou pelo processo de seleção, consciente ou não, de um fato significativo de sua vida, que está disposto a contar. É importante facilitar a visualização deste evento no contexto maior da vida. O profeta compara a sua vida a um tecido que o tecelão ia tecendo (“Como um tecelão, eu trançava o fio de minha vida; agora, me cortaram os fios” Is 38,12). O tecido de nossa vida é, de fato, constituído de um fio condutor que nem sempre é fácil detectá-lo. Ele não é claro para todos. O relato das experiências poderá ajudar a quem o faz a descobrir a trama que dá sentido total à sua vida.

Vivemos num mundo de constantes e profundas mudanças, que tornam a nossa existência por demais fragmentada e dificultam, cada vez mais, o acesso ao sentido mais profundo de nossa vida. A complexidade em que estamos mergulhados faz com que uma parcela significativa da humanidade não consiga perceber o sentido real de sua vida e se perca em vivências desconexas, desarticuladas. Há pessoas que buscam um horizonte que dê sentido à sua existência. Outras, no entanto, vão vivendo a cotidianidade de forma fragmentada, ao sabor do que o próximo dia lhe reserva, sem nenhuma reflexão existencial, sem projetos a longo prazo. A mentalidade pragmática hodierna não favorece o espírito reflexivo, nem tampouco produz satisfações existenciais profundas, capazes de dar sentido à vida. Porém, é possível partir dos fatos mais significativos da existência de alguém para ajudá-lo a acercar-se do contexto maior de sua vida.

Aquilo que compõe o conjunto da existência humana, ou seja, alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, esperanças e angústias, dúvidas e certezas serão o primeiro conteúdo de uma missão que pretende ajudar as pessoas a adquirirem convicções profundas sobre o valor e o sentido da vida. Em outras palavras, a ação evangelizadora precisa partir dos sentimentos e emoções, desejos e anseios das pessoas, para que a Boa Nova lhes fale verdadeiramente ao coração. Este encontrar-se com as pessoas e suas vivências deverá favorecer-lhes a possibilidade de releitura das próprias experiências e será o primeiro passo de qualquer projeto missionário. Isto implica na consciência de que não levamos a Boa Nova no bolso, mas a vemos emergir onde as pessoas realizam suas vivências, no mais comum do agir diário. É admitir o protagonismo do Espírito na missão, que não submete sua presença e ação às nossas categorias, nem as reduz a eventos puramente individuais. Atua na sociedade e no coração da história, com a liberdade que o caracteriza, soprando onde quer (Jo 3,8) e quando quer.

2) Mística: o sentido da vida. Viver sem convicções pode tornar a pessoa vulnerável demais e presa fácil das ondas passageiras. Como já dissemos, o primeiro passo da missão é escutar e perscrutar as experiências das pessoas para acercar-se das suas motivações e perceber se estas são frutos de convicções profundas, capazes de lhes dar um rumo na vida. O valor de uma convicção tem a ver com o projeto de vida traçado, com a globalidade da existência de alguém. Aqui estamos tratando da mística que nos sustenta na luta e dá sentido à nossa existência.

Partindo do sentido grego da palavra mística-mistério (=guardar um segredo), mística significa o caminho para se chegar à descoberta do Grande Mistério que dá sentido à vida humana. O apóstolo Paulo diz: “a mim, o menor de todos, foi dada a graça de anunciar o grande Mistério (segredo) que estava escondido e que se deve revelar: Jesus Cristo. Ele abriu o reino e a salvação a toda a humanidade – judeus e gentios” (Ef 3,4-9; Cl 1,26; Rm 16,25-26).

Mística é o processo pelo qual, por Jesus Cristo, o Revelador do Mistério de Deus, entramos na intimidade de Deus e com Deus. E no Deus de Jesus Cristo encontramos a força para nossa vida cristãos, de seguidores de Jesus. “Para mim o viver é Cristo”, confessa São Paulo (Fl 1,21).Mística é esta força que nos envolve por inteiro e dá sabor ao nosso existir ao nosso ser cristão e ao nosso agir. Mística não a vemos, não a apalpamos, mas é ela que nos caracteriza e nos torna seres distintos uns dos outros. Ela se refere aos nossos sentimentos mais profundos, aos nossos anseios, às nossas alegrias e motivações. Numa palavra, mística trata dos nossos desejos. Assim sendo, não é possível começar um processo missionário que pretenda impregnar as pessoas das convicções mais profundas sobre o existir sem referência aos seus desejos, seus anseios, suas alegrias e opções. Tudo isso emerge do conjunto das experiências que compõem o dia-a-dia das pessoas. Trabalhar no campo da mística tem a ver com o sentido global que direciona a vida de alguém. O que pode provocar a mudança de rumo de alguém? Qual a força que pode alterar os projetos pessoais em vista de um outro projeto maior, mais global? Que tesouro pode provocar a venda de todo o resto para comprá-lo? (cf. Mt 13, 44-46).

A experiência cristã registra uma lista imensa de pessoas que deram esse passo significativo na vida. Pessoas que deram um giro de 180 graus na direção de sua caminhada. As Santas Missões Populares querem criar espaços para que um número significativo de irmãos e irmãs possam dar um salto qualitativo na sua vida. Para o missionário, a mística cristã tem a ver com a pessoa de Jesus Cristo. Trata-se de uma experiência profunda, existencial, envolvente com a Pessoa e o Projeto de Jesus Cristo.

3) A visita e o exercício da escuta. Tudo o que foi dito tem no exercício de escuta o seu ponto de partida. Como entranhar-se nas experiências dos outros sem abrir espaço e criar condições favoráveis para que falem? Devemos ouvir o que eles têm a dizer de suas vidas, não o que gostaríamos que dissessem. Ouvir na gratuidade, sem cobranças de nenhuma ordem. É preciso evitar toda e qualquer tentação de querer dar receitas, conselhos. O importante, neste momento, está na atenção total na escuta. Ouvir bem o que os outros têm a nos dizer não é atitude tão natural que dispense esforço. Devemos ter consciência de que, pelo simples fato de pertencermos a uma instituição conhecida, já carregamos conosco uma certa imagem e somos identificados com um corpo doutrinal. Isso, em si mesmo, não é bom nem mau. Pode, porém, influenciar o outro na escolha da experiência que ele nos relata.

Daqui decorre a necessidade de uma postura de total abertura e acolhida da vida e das experiências de quem a gente visita. No momento da visita, o mais importante é a pessoa que nos recebe, não as nossas notícias e o que a gente gostaria de dizer. Ouvir, ouvir e ouvir, evitando qualquer intervenção no relato. (cf. Boa Nova já chegou! Decálogo do Missionário, p. 26).

A tradição bíblica conferiu à atitude da escuta uma importância singular, muito superior à capacidade de falar. “Quem responde antes de ouvir, passa por tolo e se cobre de confusão” (Pr 18,13). Salienta a primazia do ouvir em relação às possíveis respostas: “Escuta com ternura o que te dizem a fim de compreenderes e darás então uma resposta sábia e apropriada” (Eclo 5,13). Jesus, também, nos seus ensinamentos, mostrava a importância de ter ouvidos para ouvir (cf. Mt 11,15; 13,15-16). É, sem dúvida, mais importante ouvir com atenção, com carinho, que se adiantar em dar conselhos e apresentar soluções. Propomos, portanto, que a primeira etapa da missão seja toda ela dedicada a ouvir, a escutar a cada um, a perscrutar a realidade que vai ser missionada.

Neste contexto, a visita será o ponto-chave do processo missionário. “Visita” no sentido mais profundo. Ir à casa de alguém implica estar disposto a colocar-se no campo próprio do outro. É aceitar a condição de ser recebido ou não. Nas atuais condições sociais em que vivemos, sobretudo nas grandes cidades, a visita deixou de ser uma conseqüência natural da proximidade, da vizinhança. Tornou-se mais exigente e ficou mais evidente o seu autêntico significado. Revela a disposição de ir ao encontro de alguém, de sua história. Significa interessar-se pelo outro. E a Bíblia confere à visita uma importância mais contundente. Deus toma a iniciativa de visitar seu povo para o libertar (Ex 3,7-20). Visita sua gente e permanece no seu meio (Sf 3,12-15). E através de seu Filho, concretiza a grande visita: encarna-se e “arma sua tenda” no meio do seu povo (cf. Jo 1,14). Jesus vem para ouvir, escutar e perscrutar a realidade do povo. Passa a maior parte de sua vida na escuta. E sua missão inclui inúmeras visitas. Para curar (cf. Mc 4, 4-38), provocar mudanças (cf. Lc 19, 2-10), levar a misericórdia do Pai ou apenas descansar na casa de amigos (cf. Lc 10,38).

A casa torna-se um lugar propício da missão; é o lugar onde o outro realiza suas experiências mais pessoais, mais íntimas. É o lugar da “revelação”, do esclarecimento das experiências que os discípulos não sabem entender (cf. Mc 4,10.34; 7,17; 10,10; 14,17ss.). Partir da realidade existencial daqueles aos quais pretende explicitar o sentido mais profundo de sua vida, está na raiz da prática de Jesus. Ele sabia ir ao encontro das pessoas e lhes falava a partir das suas buscas mais profundas.

4) Jesus, o visitador do povo. Na prática de Jesus descobrimos o profundo significado de suas visitas. Em todas as casas em que entrava, provocava mudanças, alterava o rumo das coisas. Em companhia de alguns discípulos, em casa de Simão e André, curou-lhes a sogra e esta passou a servi-los (cf. Mc 1,29-31). Sua visita era garantia de continuidade da alegria do povo (cf. Jo 2,1-12), mas também servia para corrigir posturas e atitudes daqueles que eram visitados. A maneira, porém, de Jesus corrigir a mentalidade das pessoas era toda especial. Vejamos sua visita à casa de um fariseu. Primeiramente, aceitou o convite para a refeição. Na cultura de Jesus, sentar-se à mesa com alguém era mostrar-se disposto a cultivar amizade, significava um gesto de confiança. Essa foi a primeira disposição de Jesus. Porém, diante da desconfiança do fariseu, contou-lhe uma parábola que lhe tornava possível perceber os próprios equívocos (Lc 7, 36-50). Usava uma linguagem simples, em forma de parábolas, que não faz saber, mas faz descobrir (cf. Mc 4,33). Mais elucidativa ainda é a sua visita à casa de Zaqueu. Provocou uma radical mudança na sua vida e explicitou o sentido mais amplo e profundo de sua visita: “hoje a salvação entrou nesta casa” (cf. Lc 19, 1-10).

Enfim, visita e escuta constituem as duas primeiras atitudes dos missionários que, em nome de Jesus, sairão ao encontro das pessoas a serem missionadas e de sua realidade. Procurarão, primeiro, detectar os sinais da Boa Nova já presentes na experiência do povo.

O grupo é convidado a fazer uma recapitulação deste tema, servindo da dinâmica nº 4 da página ........ (ou outra).

2. Seguir a Jesus e fazer seguidores

1) Caminhar na estrada de Jesus. O missionário que realizou bem a experiência da visita e da escuta está apto a confrontar sua prática com a de Jesus. Pode verificar se seus sentimentos são os mesmos dele. “Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se dela, porque era como ovelhas que não têm pastor” (Mc 6,34). Na humildade de quem se descobre incapaz de dar respostas a todas as inquietações do povo visitado, o missionário é convidado a pôr-se a caminho com aquele que ajudará a carregar o fardo e abrir novas portas. É no contato com a realidade do outro que o missionário vai se fazendo seguidor de Jesus e suscitando nos outros o desejo de também seguir àquele que o conforta. A convicção presente na missão cristã é a de que o encontro com Jesus, a partir das experiências do dia-a-dia, dará àquele que o encontra o sentido mais profundo de sua existência.

É importante ressaltar que seguir é diferente de imitar o que se fazia em tempos idos. Seguir implica saber recriar, nas condições de hoje, a prática de Jesus. Os problemas que emergem do exercício da escuta, das visitas realizadas, certamente têm contornos diferentes daqueles das ovelhas sem pastor do tempo de Jesus. Exigem respostas novas da parte do missionário. A prática de Jesus, porém, é inspiradora para a nossa. Escutar, visitar, compadecer-se, curar, ter misericórdia, amar e entregar a própria vida em favor dos outros constituem-se num conjunto de atitudes que marcam a prática de Jesus e têm um valor permanente na vida de quem quer fazer-se seguidor de Jesus.

Anunciar Jesus e sua prática deverá ser uma decorrência natural daquele que quer ajudar a alguém a encontrar o sentido para sua existência. Porém, não será a atitude primeira. Pôr-se a caminho com o outro, a partir de suas experiências, ajudando-o a descobrir o sentido de sua vida, possibilitando-lhe a elaboração das perguntas que orientam o seu viver, deve vir antes de qualquer exigência, deve ser uma atitude despojada de qualquer cobrança.

A revelação de Jesus como Caminho, Verdade e Vida deverá brotar desta postura de gratuidade do missionário. Em outras palavras, a maneira de viver a mística cristã deverá ser convincente, a ponto de arrastar até incrédulos ao seguimento de Jesus. “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). A atitude amorosa de escutar o outro, de interessar-se por ele, poderá ser reveladora do amor maior de Deus por todas as suas criaturas.

2) A mística cristã nos leva à solidariedade e ao compromisso. Na primeira etapa da missão, a escuta e a visita são fundamentais e deverão ser elementos facilitadores para a revelação do amor misericordioso de Deus. As experiências humanas ganharão novo sentido, novo significado, se forem lidas na ótica do grande mistério do amor de Deus para conosco. Trata-se de refazer a experiência e de descobrir que a força, que nos move a amar, a fazer o bem, a viver em solidariedade com os irmãos e irmãs, chama-se Jesus. Nele somos chamados a vivenciar a experiência de sermos filhos do Deus misericordioso que liberta de todas as amarras, que nos impedem de amar os outros gratuitamente, como Ele nos ama. O que importa é garantir o anúncio do núcleo essencial da fé. “Em outras palavras, anunciar Jesus Cristo, não como uma doutrina, mas como uma pessoa, através da qual o mistério de Deus se torna próximo de nós” (Boa Nova já chegou!, p. 11). A certeza do anunciador é que a mensagem cristã, quando bem passada através do testemunho, do diálogo, do serviço e do anúncio, é capaz de sensibilizar as pessoas para a solidariedade e o compromisso.

Desta etapa da missão deverão surgir inúmeros grupos, de acordo com o carisma de cada um, para o atendimento das diversas realidades a serem evangelizadas e que emergiram das visitas e das escutas da primeira etapa. Aos primeiros missionários serão agregados novas lideranças que aceitaram o seguimento e perceberam que é na caminhada com os irmãos - no fazer-se solidário com os que sofrem, andam desorientados e precisam de um sentido na vida - que encontrarão o sentido para a sua existência.

3) A irrupção do Espírito Santo. Na vivência religiosa do povo, Jesus aparece como aquele que entra nas casas, ampara seus moradores, torna a casa abençoada, faz refeição com eles. Da mesma fama gozam os santos. Porém, tanto Jesus quanto os santos, na maioria das vezes, são apresentados pela espiritualidade tradicional, como aqueles que nos aproximam de um Deus que está longe e não do Deus de Jesus Cristo. É por isso que muitos não conseguem perceber que Deus está próximo. As Santas Missões Populares poderão constituir-se num momento forte de valorização da religiosidade popular e de possíveis correções de equívocos que nela também estão presentes. Importante, porém, é partir dos valores aí contidos e que tanto têm ajudado o povo a vivenciar sua religião. Nada impede, por outro lado, ajudar o povo a construir uma nova prioridade na sua expressão de fé e substituir o velho retrato que tem de Jesus.

Conhecemos, hoje, a irrupção do Espírito Santo na vida e na religiosidade do povo. Esse novo Pentecostes poderá colaborar imensamente para o reconhecimento da atualidade e urgência do seguimento de Jesus. Pela ação do Espírito, temos a presença dinâmica e transformadora de Jesus na história. É o Espírito que nos mantém abertos ao novo e nos esclarece o caminho a seguir.

3. Comunidade e Missão

1) É a comunidade que envia. Não há autêntica missão sem o envio por parte de uma comunidade concreta. Em outras palavras, ninguém pode atribuir-se o título de missionário, se a comunidade não o envia. Aquele que vai à procura do irmão através da visita e da escuta; aquele que anuncia Jesus como o sentido autêntico da vida dos homens e das mulheres, não o faz em nome próprio. Ele vive a experiência do confronto de sua fé com outros irmãos e irmãs, que também descobriram em Jesus o sentido último de sua existência. A vida comunitária tem se constituído no espaço de verificação da autenticidade da experiência cristã. É na comunidade, também, que o cristão encontra apoio, segurança e coragem para recomeçar sempre a aventura do seguimento de Jesus.

Para que a comunidade cumpra sua função de ponto de apoio aos missionários, precisa ser calorosa, vibrante, em uma palavra, profundamente evangélica. A experiência da comunhão com os irmãos deve favorecer ao missionário, à missionária a radicalidade no seguimento de Jesus. Porém, o missionário(a) deverá ser aberto o suficiente para perceber que não é necessário arrastar para a comunidade todos os que por ele forem visitados. O mundo a ser evangelizado conhece inúmeras formas de vivência da fé e de seguimento de Jesus. O episódio do batismo de João pode nos abrir pistas neste sentido. Aqueles que vinham até João, buscando o batismo e perguntando-lhe: “Que devemos fazer?”, recebiam indicações de como viver sua nova condição nos seus próprios ambientes. A multidão, os publicanos e os soldados encontraram respostas adequadas à sua condição existencial (cf. Lc 3,10-14). É importante acolher e respeitar estas formas. Mas a comunidade seguirá sendo o espaço privilegiado da vivência do amor a Deus e da comunhão entre irmãos.

2) É a comunidade que acolhe. As comunidades, por sua vez, deverão trabalhar fortemente a dimensão da acolhida. Cada pessoa contatada pelas etapas missionárias anteriores deverá encontrar na comunidade uma razão convincente para dar continuidade ao seguimento recém-iniciado. Nossas comunidades precisarão abrir-se para as realidades novas que vão surgindo no processo missionário. Cientes de que não terão respostas para tudo, abrir-se-ão para fazer a caminhada com os que as procuram. Estarão dispostas para a busca conjunta de soluções que, no princípio, não são sequer vislumbradas. A comunidade garante a perseverança na missão e mantém viva, através da oração, da celebração eucarística e constante preocupação de garantir o direito comum, a chama da utopia da sociedade sem necessitados ou excluídos.

É preciso um esforço real da comunidade para superar a mentalidade de grupo fechado, de grupo que se considera mais puro e superior aos outros. Importa vencer a mentalidade de competição e de prestígio reinante na sociedade e presente, também, na Igreja. É necessário afastar toda e qualquer atitude que marginaliza os pobres ou os que são hoje considerados impuros. Uma comunidade missionária supera toda e qualquer tentação de se deixar seduzir pela ideologia dominante da busca do poder.

3) Comunidades missionárias. A grande tarefa daqueles que acreditam na força das comunidades será assumir, com alegria, o desafio da missão que Jesus mesmo deixou para os seus seguidores e constituir verdadeiras comunidades missionárias. “Jesus enumera os pontos principais que devem caracterizar a missão de uma comunidade cristã (Mc 1,16-45):

- Congregar as pessoas em torno a Jesus e entre si: “sigam-me” (Mc 1,16-20), criando comunidade;

- Despertar consciência crítica no povo frente à realidade: “ficavam animados com seu ensinamento” (Mc 1, 21-22);

- Combater o poder do mal, expulsá-lo e, assim, libertar as pessoas. “Ele manda nos espíritos maus e eles obedecem” (Mc 1, 23-28);

- Restaurar e salvar a vida do povo para o serviço: “a febre deixou a mulher e ela começou a serví-los”; “e curou muitas pessoas de vários tipos de doença” (Mc 1, 29-34);

- Permanecer unido à raiz que é o Pai, através da oração: “foi rezar num lugar deserto” (Mc 1, 35);

- Manter a consciência da missão e não se fechar nos resultados obtidos: “Vamos para outros lugares, às aldeias da redondeza” (Mc 1, 36-39);

- Libertar e reintegrar os marginalizados na convivência: “o homem começou a pregar muito e a espalhar a notícia" (Mc 1, 40-45). (C. Mesters. Caminhamos na Estrada de Jesus, p. ...... ).

DINÂMICA:
Escolher uma das citações evangélicas para dramatizá-la e trazer para a realidade de hoje.

4) O Jubileu na Igreja. A Igreja poderá dar provas concretas de que quer cruzar os umbrais do novo Milênio, resgatando as esperanças de inúmeros irmãos e irmãs excluídos e sedentos de compreensão. Nesta ordem de coisas, poder-se-ia sugerir uma ampla revisão da maneira como a instituição vem tratando o direito das pessoas a terem acesso à Palavra e à Eucaristia. Por que não agir, com coragem, para atuar efetivamente o mandato do Senhor (cf. Lc 22,19)?

Se houver uma autêntica vontade de mudança, as pessoas que encontraram o sentido para sua vida, através das Santas Missões Populares, terão ânimo e apoio para a vivência do Evangelho, com tudo isso que implica. Neste sentido, poderá ter um significado forte o aprofundamento sistemático da leitura da Palavra de Deus. O método da leitura orante poderá transformar-se num instrumento valioso de aproximação cada vez maior da vivência daquilo que Deus realmente quer para todos. As liturgias poderão articular-se melhor com as experiências pelas quais passa o povo no dia-a-dia. A busca constante por maior formação teológica e bíblica poderá também caracterizar a postura de quem quer investir no protagonismo laical.

Outro ponto concreto de esforço que a Igreja poderá fazer para bem celebrar o Jubileu está na flexibilização e abertura das estruturas, que facilitem o acesso à participação dos leigos e leigas na vida e nas decisões da Igreja. As mais variadas formas de solidariedade, quer sejam as vinculadas às comunidades ou às instituições que defendem os direitos humanos, deverão ser incentivadas cada vez com maior empenho. É preciso, ainda, descobrir formas de dar apoio e suporte aos cristãos que se engajam na transformação das realidades temporais.

Essas são algumas sugestões para que a Igreja encare o Grande Jubileu como um tempo favorável para uma reação positiva frente ao marasmo atual e à sua falta de elã, que tem levado tantos cristãos a buscarem alimento para sua fé em outras searas. Mais Evangelho, menos estruturas. Mais mística, menos legalismo!

Atividades:

Formar grupos e escolher uma das atividades seguintes para trabalhar e, em seguida, apresentar em plenário.

1. Apresentar ações concretas para desenvolver a dimensão da acolhida na comunidade.

2. Escolher passagens bíblicas (do Antigo e do Novo Testamento) sobre a visita de Deus à humanidade.

3. Destacar os aspectos calorosos, vibrantes e evangélicos da própria comunidade.

4. Elaborar um pequeno projeto para vivenciar as sugestões apresentadas no Texto ou outras.

5. Preparar uma celebração penitencial da falta de missionariedade e vibração evangélica da comunidade.

4. Ser cristão no mundo

1) A missão no dia-a-dia. O grande desafio está na continuidade da missão. As Santas Missões Populares não têm a intenção de trazer todo mundo para dentro da Igreja. Ela é fermento, sinal e instrumento de salvação e de unidade. O projeto missionário tem claro que é na sociedade, com toda sua complexidade, que o fermento do Evangelho deverá levedar e propiciar o surgimento de estruturas de solidariedade e relações de comunhão.

As pessoas missionadas deverão ter resgatado, juntamente com o sentido da vida, a vontade de participar, nos mais variados níveis, da luta pela construção de uma sociedade onde a ética e a justiça sejam respeitadas. Porém, nem todos participarão da mesma maneira e nas mesmas instâncias. Uns se convencerão da necessidade de um engajamento mais sistemático e profundo. Transformar-se-ão em missionários no sentido permanente, repetindo todo o processo das Santas Missões Populares: visitando e escutando outras pessoas; convencendo-as da beleza do seguimento de Jesus; apontando a comunidade e outras instâncias de solidariedade como maneiras privilegiadas de garantir a perseverança quotidiana na construção de novas formas de vida e solidariedade, contra toda a opressão, exploração e exclusão.

O renascer das utopias, que enfrentam os problemas do desemprego e da sociedade pensada para poucos, poderá ser um fruto eficaz do processo missionário. A mensagem cristã tem uma forte carga utópica. Ela poderá ser um alento para os excluídos, transformando-os em verdadeiros sujeitos da ação missionária. Fé e resistência eles já provaram que as têm!

2) A necessidade do testemunho. Fundamental, porém, será o testemunho daqueles que encontraram o sentido para sua vida. Nada mais convincente do que o testemunho de quem encontrou em Jesus a razão de sua existência. Este testemunho deverá estar marcado pela disposição do serviço incondicional em favor daqueles que ainda andam sem rumo, sem sentido.

O processo missionário terá sempre presente, ao longo de sua realização:

a) partir das experiências concretas do povo;

b) ater-se ao núcleo essencial da fé - a pessoa de Jesus Cristo, morto e ressuscitado;

c) ativar os grandes ideais do povo que andam adormecidos, porém não mortos;

d) despertar para a solidariedade e o compromisso.

Processo marcado pelo forte apelo do testemunho daqueles que já estão convictos de que Jesus Cristo, morto e ressuscitado, constitui-se no maior exemplo a seguir. Estes são os chamados a se entregarem totalmente para garantir a todos uma existência digna e autêntica.

3) Viver no clima do Jubileu. As Santas Missões Populares poderão conectar-se com toda a programação própria para a celebração do Grande Jubileu. Mais do que tempo de celebrações gigantescas, a memória dos dois mil anos da encarnação de Jesus Cristo poderá despertar em toda a humanidade as utopias por um novo Milênio, “farei novas todas as coisas” (Apc 21,5). A exemplo do jubileu bíblico, pode-se buscar novas formas de resgate de todas as dívidas (Lv 25). Ampliar os esforços para se pôr um basta nesta forma de organizar a sociedade, que aumenta o espírito de competição e reduz as pessoas a vendedoras e consumidoras. Esta ordem de coisas tem sido fonte da exclusão de parcela significativa da humanidade. Faz-se urgente criar espaços onde seja possível a busca de maneiras novas de viver, que ponham um fim nesta espiral desenfreada que vem gerando ricos cada vez mais ricos, às custas de pobres cada vez mais pobres. Jubileu para a Igreja deverá significar momento de graça para ativar as utopias cristãs da nova sociedade, onde os poderosos são tirados dos seus tronos e os pobres e famintos saciados da sua fome (cf. Lc 1, 52-53). A Igreja, ao longo dos últimos anos, tem dado um grande testemunho de serviço aos mais pobres e de defesa inconteste dos direitos humanos bem como de abertura missionária, superando todas as fronteiras, tanto as geográficas como as culturais e religiosas. O Grande Jubileu deverá constituir-se num motivo ainda mais forte para a renovação de seus compromissos de servir à humanidade e de comunhão eclesial na evangelização aqui e além-fronteiras. O episcopado nacional acreditou no método simples, pé-no-chão e persistente, contido no Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio”. Cabe, agora, não deixarmos apagar a mecha que ainda fumega.

Para partilhar:

O que o Projeto Rumo ao Novo Milênio tem suscitado de novo em sua comunidade?

ANEXO 1: Plano para as crianças e jovens

Onde a experiência das Santas Missões Populares já aconteceu, a presença de crianças e de jovens como missionários foi um ponto bastante positivo e, em alguns lugares, chegou mesmo a caracterizar o projeto. Portanto, é bom, desde o princípio, levá-los em conta na preparação das Santas Missões Populares. É o que também estão nos mostrando os participantes dos Encontros de Formação para Animadores da Infância Missionária (EFAIMs) e o serviço junto às crianças da Infância Missionária.

A inclusão de crianças tem demonstrado seus frutos através dos Grupos de Infância Missionária, que tão bem exercem seu protagonismo como, também, sabem se entrosar no trabalho com os adultos.

Faz-se, então, necessário buscar e contar com a presença dos jovens e crianças. As crianças com seu espírito missionário e os jovens, com a experiência da missão jovem, vêm tornando-se realidade e enriquecimento pastoral, em várias partes do país.

Como já sabemos, crianças evangelizam crianças e jovens evangelizam jovens, através de sua própria cultura, espiritualidade e metodologias adequadas. Portanto, há que somar forças e não deixar perder este potencial.

Na preparação e capacitação de missionários(as) principalmente dos jovens e crianças, é possível se utilizar dos seguintes livros: “Missão jovem, um jeito novo de Evangelizar” e “Infância Missionária – Diretrizes e Orientações” .

Na preparação própria com as crianças e jovens, além de uma adaptação das orientações que são dadas aos adultos, será bom contar com os seguintes elementos:

- partir da experiência de vida que as crianças e jovens já têm acumulada (Infância Missionária, Missão Jovem e outros movimentos);

- leitura da Bíblia na ótica das crianças;

- realizar a preparação das crianças no mesmo dia da preparação dos adultos, em salas diferentes, mas que favoreça um entrosamento entre todos os envolvidos nas Santas Missões Populares;

- cuidar para que o convite não incorra na discriminação de crianças, mas acreditar no seu protagonismo e potencialidades, respeitando a faixa etária, servindo-se de dinâmicas apropriadas.

- integrar crianças e jovens nas visitas às famílias e em outros serviços das Santas Missões Populares, ou mesmo programar visitas às crianças e aos jovens: crianças visitam crianças e jovens visitam jovens.

ANEXO 2: Roteiro para as visitas às famílias nas Santas Missões Populares

A visita dos missionários e missionárias às famílias, nas Santas Missões Populares, fundamenta-se nas visitas que Deus fez a seu povo no Antigo Testamento e, em Jesus, o Filho de Deus, que ergueu sua tenda no meio de nós, “e o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).

A visita é uma questão de amor. Quem ama de verdade toma a iniciativa missionária e vai. Vai visitar, partilhar a alegria de sua fé. Vai viver a vida de comunhão, de fraternidade numa comunidade de irmãos.

Visitar as famílias é continuar o projeto de Deus. É colocar o humano em contato com o divino e vice-versa, vivendo a relação de comunhão à imagem da Trindade Santa.

Deus sempre toma a iniciativa e vem ao encontro das pessoas, visitando suas criaturas:

Adão e Eva ouvem os passos de Javé que passeava no Jardim. Javé chamou Adão: “Onde está?” (cf. Gn 3,8-9).

Abraão é visitado por três pessoas, Mensageiros de Deus. Abraão acolhe-os, familiarmente, em sua casa, e é agraciado e abençoado em toda a sua posteridade (cf. Gn 18,1-15).

Deus visita Sara e cumpre a promessa feita a Abraão. Ela concebe e dá à luz um filho a Abraão já velho, Isaac (cf. Gn 21,1-3).

Moisés, através da visita de Deus, recebe a missão de formar o povo libertando-o da escravidão (cf. Ex 3,7-20). O povo é visitado por Deus, une-se e busca a libertação (Ex 27-31). Deus, novamente, manifesta-se e resgata a vida dos pequenos do povo (cf. 1Rs 17,7-24).

Samuel, em sonho, recebe o chamado de Deus, desperta sua vocação e responde prontamente: “Fala, Senhor, que teu servo escuta” (1Sm 3,1-10).

Jó recebe a visita de Javé e é agraciado com paz e bênção em toda a sua descendência (cf. Jó 5,24-25).

Os Profetas, por meio de variadas circunstâncias, percebem a presença de Deus em suas vidas que os chama e os envia a profetizar, denunciando as injustiças e as infidelidades ao projeto de Deus e anunciam a esperança messiânica e a fidelidade de Deus (cf. Jer 1,4-10; Is 6,1s; Am 3,13-15; 6,1-7; 9,11-15).

O Anjo do Senhor apareceu a Zacarias e anunciou-lhe o nascimento de João Batista (cf. Lc 1,8-18).

Maria recebe a visita do Anjo Gabriel, que lhe anuncia a escolha de Deus para ser a Mãe de Jesus. O Filho de Deus encarna-se em seu seio e vem morar no meio de nós (cf. Lc 1,26-35).

Isabel é visitada por Maria. Alegria, serviço, ternura e comunhão são expressões da presença de Deus neste encontro (cf. Lc 2,11s).

Os Anjos, na noite de Natal, anunciam aos pastores a alegre notícia do nascimento de Jesus, o Salvador. Os pastores “combinaram entre si: vamos a Belém ver o que o Senhor nos revelou”. Foram e encontraram Maria e José e o Menino recém-nascido. “Voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam visto e ouvido” (Lc 2,8-18).

Jesus é visitado pelos Reis Magos, que o adoraram, oferecendo-lhe presentes e manifestaram a presença da salvação para todos os povos, raças e nações (cf. Mt 2,7-12).

Aos doze anos, Jesus vai ao templo, em Jerusalém, sinal de sua maioridade e comunhão com a comunidade, manifestando a vontade do Pai (cf. Lc 2,22-24).

O povo acorre (visita) a João, no Rio Jordão, para receber o batismo de conversão (cf. Lc 3,3).

Jesus também vai a João para ser batizado. O Espírito Santo desce sobre Jesus, iniciando sua missão (cf. Mt 3,13-15).

João Batista recebe, na prisão, os discípulos e os envia a Jesus. Jesus testemunha a fidelidade de João e convoca os ouvintes à conversão e à prática da justiça, a exemplo de João (cf. Lc 18,20).

Zaqueu recebe a visita de Jesus em sua casa, converte-se, muda de vida e a “salvação entra nesta sua casa” (Lc 19,1-10).

A sogra de Pedro é visitada por Jesus, recebe a graça da cura e começa a servir (cf. Mc 1,29-31).

A casa de Marta, Maria e Lázaro é, para Jesus, lugar de descanso, de amizade e de comunhão (cf. Jo 12,2).

A visita é sempre uma oportunidade de escutar o que os outros têm a dizer como forma de construir a verdadeira partilha (cf. Lc 24,13-33).

O Apóstolo Paulo faz uma experiência tão forte e profunda da presença de Jesus em sua vida, que chega a expressar: “Fui conquistado por Jesus Cristo!” (Fl 3,3-12).

A visita é sempre um ir à casa dos irmãos e irmãs em nome de Deus (cf. Mt 26,17-19) com amor, carinho e afeto. É buscar juntos uma maneira nova de ser, viver e conviver. São Paulo, pela visita de Ananias, recupera a vista e descobre um novo objetivo em sua vida (cf. At 9,10-19).

Todas as pessoas tocadas pelo Senhor abrem as portas de suas casas, a exemplo de Lídia, negociante de púrpura da cidade de Tiatira, que convidou Paulo e seus companheiros a hospedarem-se na sua casa, em Filipos. “E forçou-os a aceitar” (At 16,14-15).

As visitas às famílias serão realizadas com maior sucesso se forem precedidas de alguns encontros com os visitadores e com eles forem trabalhados os aspectos que as envolvem. Mas como todo o projeto das Santas Missões Populares, as visitas não poderão ser reduzidas à mera técnica. Faz-se necessário dar aos visitadores uma forte motivação bíblico-teológica. Em outras palavras, é preciso refletir com eles a espiritualidade que envolve o fato de adentrar a casa de alguém para levar-lhe a paz de Jesus. Conforme a comunidade, as visitas poderão ser precedidas, por exemplo, de um retiro espiritual. Antes da missão, a oração!

Vamos apresentar alguns aspectos importantes a levar em conta nas visitas.

1) Objetivo das visitas:

- perscrutar os sinais do Espírito presentes na realidade a ser visitada;

- criar condições para que as pessoas se manifestem, revelando suas vidas e, assim, promover os valores que estão nas pessoas;

- valorizar a cultura dos diferentes grupos detectados nas visitas;

- viver, na doação de si mesmo e na gratuidade evangélica, o autêntico espírito missionário;

- conhecer a realidade das famílias e instituições;

- ouvir as necessidades e esperanças das pessoas;

- levar o Evangelho, com destaque ao serviço e à prática da misericórdia;

- colocar a serviço das pessoas o que a comunidade tem para oferecer;

- criar laços de amizade, canal de futuros engajamentos evangelizadores;

- criar clima de união entre os moradores de uma rua, prédio, quadra, vila;

- lançar as sementes de futuros grupos de reflexão, círculos bíblicos;

- descobrir novas lideranças, despertar vocações.

2) Postura dos visitadores:

- na medida do possível, entrar em todas as casas onde houver acolhimento;

- observar bem o ambiente para saber como agir;

- em caso de situações mais difíceis (doença, fome, conflitos ...), fazer o que estiver ao alcance e tentar envolver também os vizinhos, criando assim uma corrente de solidariedade;

- se encontrar casas fechadas, voltar depois ou deixar o recado com os vizinhos;

- entrar nos bares, lojas, escritórios, bancos... se houver condições, dando uma mensagem ou, pelo menos, abrir o convite para os encontros, orações, celebrações;

- entrar nas casas de pessoas de outras igrejas ou grupos religiosos, se houver condições favoráveis e acolhimento, procurando sempre evitar conflitos desnecessários;

- nunca perder de vista que os missionários são mensageiros da paz, da justiça e testemunhas do amor de Jesus;

- criar atitudes de diálogo, de entrosamento, de solidariedade;

- onde for possível, ler um trecho da Bíblia, entoar um canto, fazer uma oração, dar uma bênção...

- se a comunidade julgar conveniente, os visitadores poderão ter alguma identificação: camiseta, cruz, terço, Bíblia. Não se esquecer, porém, que o que mais identifica um visitador cristão é a sua atitude.

3) Quem deve fazer as visitas missionárias?

- todas as pessoas (velhos, adultos, jovens e crianças) motivadas e preparadas para este ministério das visitas missionárias, mesmo que já atuem em outras pastorais ou movimentos e queiram ampliar sua ação;

- os agentes de pastoral, inclusive os padres, religiosos e religiosas que se preparam para esse ministério.

4) Algumas qualidades essenciais dos visitadores, que poderão ser trabalhadas durante os encontros de preparação

- conhecer os trabalhos e os recursos da diocese, paróquia e comunidade que poderão ser apresentados aos visitados;

- conhecer os fundamentos bíblicos das visitas;

- ser discreto e ter capacidade para manter a mais completa discrição sobre o que ficar sabendo nas visitas;

- ter o mínimo de perspicácia para perceber quando está ajudando e quando está se tornando inoportuno;

- saber respeitar as diferenças;

- saber escutar com paciência as críticas e esclarecer os possíveis mal-entendidos;

- ouvir mais que falar;

- ser simples e claro;

- adaptar-se aos horários das pessoas.
5) O quê e a quem devemos visitar?

- a todas as famílias e instituições como escolas, fábricas, sociedades de amigos do bairro, igrejas de outras confissões, hospitais, centros comerciais, mercados...

- de modo preferencial, a todos os que passam por momentos difíceis como os doentes, os desempregados, os enlutados, os que vivem solitários, os portadores de HIV, as pessoas que estão na prostituição, os marginalizados, os presos, os sofredores de rua...

- as famílias que estão vivendo momentos importantes como espera e o nascimento de um bebê ou celebram bodas, noivados, casa nova...

6) Lembrança da visita. A comunidade poderá preparar um folder, cartão, cartazete, um sinal sensível, contendo:

- o endereço da comunidade e os horários de celebrações e outras funções comunitárias;

- uma relação de programas católicos nas rádios e TVs;

- uma relação de revistas e jornais católicos;

- oração pelas famílias;

- se a família manifestar-se favorável, os visitadores poderão benzer a casa e as pessoas, deixando uma lembrança.

7) Pós-visita

Os visitadores poderão preeencher uma ficha resumo (nunca durante a visita) com atenção aos seguintes pontos:

- nome e endereço das pessoas que se dispõem a novos contatos e colaborar diretamente;

- necessidades manifestas pelas pessoas visitadas;

- expectativas das pessoas visitadas em relação ao bairro, à comunidade e à religião;

- partilhar em grupo ou comunidade as experiências das visitas, sem nunca entrar em detalhes sobre a vida dos visitados, dando atenção aos seguintes pontos:

- dados positivos percebidos;

- o que deu certo e o que não foi tão bom;

- o que se pode fazer para melhorar.

(cf. Pe. Luís Mosconi, “Santas Missões Populares” e Região Episcopal Lapa, da Arquidiocese de São Paulo, “Visitas Missionárias”).

ANEXO 3: Sugestões para os encontros da primeira etapa

Ao encontro com o Jesus vivo

Os Encontros e as Celebrações, em preparação às Santas Missões Populares, são momentos fortes e fecundos de experiências de Deus, de oração, de reflexão, de vida e comunhão e de compromisso de evangelização.

Sugerem-se, primeiramente, Roteiros e Dinâmicas e, em seguida, os Temas de quatro encontros, para a primeira etapa das Santas Missões Populares.

1) Roteiros e Dinâmicas

1º. Acolhida

Seja sempre alegre, demonstrando a felicidade de quem está com Deus. “Onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles” (Mt 18,20).

Cantos e mensagens contribuem para criar o clima de oração e de reflexão que leve a compromissos.

2º. Motivação: (Conforme o tema e objetivos).

As Santas Missões Populares são um tempo privilegiado de encontro pessoal e comunitário com Jesus, o Missionário do Pai.

O serviço, o diálogo, o anúncio e o testemunho vivenciados e partilhados, fortalecem a vida espiritual e a comunhão entre todos, na comunidade e além-fronteiras.

3º. Momento de oração

As Santas Missões Populares são um tempo de graça. Necessitamos da força de Deus por meio da oração. Após uns instantes de silêncio, fazer orações, as que todos nós rezamos e outras espontâneas. Os símbolos e os gestos (dar as mãos, ajoelhar...) sempre ajudam a rezar melhor.

Outras sugestões para oração:

• Criar momentos especiais da oração, tais como: Terço Missionário, Via-sacra, adoração, procissões...

• Momentos penitenciais e de louvação;

• Unir as capelinhas e os Santos padroeiros das famílias e devoções particulares...

• Realizar um momento de prece e renovação da fé.

4º. Escutar, meditar e partilhar a Palavra de Deus, conforme os quatro temas

• Fazer a intronização solene da Bíblia com flores, velas, fitas ou lenços das cores dos Continentes, globo, algo típico da região, instrumentos musicais, cantos...

• Criar um espaço sagrado...

• Passar a Bíblia de mão em mão e fazer gestos significativos (beijar, tocar...).

• Preparar bem as leituras para serem bem entendidas por todos. Se necessário, ler mais que uma vez. Repetir frases significativas.

• Se o texto bíblico for apropriado, fazer encenação.

• Dar tempo para reflexão e partilha da Palavra de Deus e, principalmente, das experiências pessoais.

• Perguntas diretas e simples ajudam aprofundar o assunto e garantir o que é mais importante.

5º. Compromisso

A Palavra de Deus suscita compromissos e a graça do Espírito Santo dá forças para concretizá-los.

Exemplificando:

• Rezar o terço, fazer outras orações e sacrifícios em favor das Santas Missões Populares.

• Convidar mais pessoas (vizinhos, amigos...) para participar dos Encontros e Celebrações.

• Rezar pelos indiferentes, afastados...

• Apoiar e organizar grupos de Infância Missionária e Jovens Missionários.

• Elaborar faixas, cartazes, cartões, folhetos..., para motivar a participação.

• Ver as necessidades da comunidade e outras situações que precisam do nosso apoio.

• Atenção às notícias... promessas políticas...

• Momentos de convivência e confraternização...

6º. Organização

• Combinar local e horário dos encontros...

• Programar as atividades e os serviços, distribuindo tarefas.

• Os avisos são sempre importantes para a vida dos grupos.

• Fazer uma breve avaliação do encontro e pedir sugestões.

• Agradecer a participação de todos e motivar para participar sempre...

• Concluir os encontros com uma Celebração entre todos os Grupos da comunidade, assumir compromissos comunitários, confraternização, festa...

7º. Oração, Cantos e Bênção final

(Usar criatividade; cantar com gestos; fazer a imposição das mãos, virar-se em direção à sua casa; estender as mãos em direção aos pontos cardeais...).

8º. Abraço da paz

(Celebrar a amizade, a fraternidade, a missão.... Sentir que somos irmãos e irmãs de verdade...).


2) Temas

1º. Jesus encontra o povo

Pode-se ler Mc 1,21-39, ressaltando alguns aspectos: Jesus atrai as pessoas, até o ponto que deixam tudo para segui-lo (v. 16-20); ensina de forma convincente e desperta a consciência crítica no povo (v. 21-22); tem poder para combater o mal, expulsar espíritos imundos e libertar as pessoas (v. 23-28); devolve a saúde a uma mulher do povo, que se põe a serviço dos irmãos (v. 29-34); reza e mostra qual é a raiz de sua ação: união com Deus Pai (v. 35); Jesus não se prende ao sucesso obtido, mas retorna à sua missão, indo mais longe; Ele se sente enviado a todos e cuida especialmente de libertar e reintegrar na vida comunitária os marginalizados (v. 40-45).

Ou pode-se ler Mc 3,1-12, ressaltando que Jesus coloca o bem da pessoa humana, a vida, acima da lei (que é feita para o bem dos seres humanos, não para impedi-los!). Entristece-se com a dureza de coração dos que deveriam ser os mestres da religião, mas se dedica com generosidade incansável ao serviço dos que sofrem.

2º. Jesus revela o Pai

Jesus não age por si mesmo, mas é movido pelo Espírito de Deus e para revelar à humanidade o amor do Pai (Deus) para com seus filhos e filhas. Jesus não exclui ninguém e se aproxima dos que os “homem de bem” chamam “pecadores”. Diante do escândalo de uns, Jesus se explica com uma parábola, a dos dois irmãos (Lc 15,11-32 - Seria um erro ver nesta parábola só o “filho pródigo”). O pai ama os dois filhos: o que foi embora e volta arrependido e o que ficou em casa, servindo. Quando o filho volta, o pai não exige prestação de contas, nem presta atenção às desculpas, mas manifesta antes de tudo sua alegria, porque reencontrou o filho que estava perdido. O outro filho, “certinho”, aparentemente obediente e cumpridor do dever, revela-se, no fim, sem coração e sem amor. Mas não é assim o Pai, isto é, Deus, que “nos amou quando ainda éramos pecadores” (Rm 5, 8-10).

3º. Jesus “mata” a sede e traz a luz

O evangelista João apresenta Jesus, através dos grandes símbolos da vida, como Aquele que corresponde aos anseios humanos: Ele é a água que “mata” a sede, o pão que alimenta, a luz que permite encontrar a verdade, o poder que devolve a vida...

Pode-se escolher o episódio da Samaritana (Jo 4, 1-42) ou o relato da cura do cego (Jo 9, 1-41). Em ambos os relatos, o evangelista ressalta o diálogo, como meio que permite à pessoa (a Samaritana, o cego) descobrir, progressivamente, o caminho para o encontro com Deus, libertando-se das ilusões, dos ídolos e enganos que lhe impediam o encontro coma verdadeira vida e a luz. O diálogo com a Samaritana ressalta mais o caminho da fé e da busca do Deus verdadeiro, abrindo uma perspectiva acima das disputas entre judeus e samaritanos. A cura do cego é interessante também pela discussão sobre a origem do mal (a cegueira), que os judeus atribuem a um pecado dos pais ou da própria criança (!), enquanto Jesus nega radicalmente a teoria (difundida, também, no catolicismo popular e no espiritismo) da doença como castigo de Deus.

4º. A salvação entra nesta casa

Lucas (19,1-10) relata o encontro de Jesus com Zaqueu, “chefe dos publicanos” (ou cobradores de impostos). Neste relato é notável, primeiramente, o fato de Jesus se aproximar de alguém que é tido publicamente como um pecador e anunciar sua visita à casa como a chegada da salvação. Em segundo lugar, Zaqueu, reagindo ao encontro com Cristo, promete dividir seu patrimônio com os pobres para reparar eventuais injustiças. Zaqueu continua sua vida na comunidade, na sua profissão, vivendo honestamente, em meio a situações marcadas pelo pecado, porque a “salvação entrou nesta casa”.

BOA NOVA JÁ CHEGOU!


Proposta para formação de evangelizadores

APRESENTAÇÃO

“Anunciar o Evangelho
não é título de glória para mi,;
pelo contrário, é uma necessidade
que me foi imposta,
Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho”

(1 Cor 9,16)

O missionário e a missionária não são uma espécie de membros qualificados da Igreja, particularmente treinados, algo como “executivos” de programas elaborados por um alto comando ou por uma elite pensante de cúpula. O que, desde os primórdios da Igreja, caracteriza o missionário e a missionária é sua profunda paixão pelo Cristo vivo, o Senhor Ressuscitado. São os apaixonados pelo Reino que até hoje contagiam homens e mulheres de todas as raças e culturas.

No dia de Pentecostes homens e mulheres “de todas as nações que há debaixo do Céu” (At 2,5), ouvindo a Pedro, “sentiram o coração traspassado”(art. 2,37) e compreenderam “os galileus” como se falassem em seu próprio idioma. Os galileus não deixaram mais de anunciar o que viram e ouviram (cf. At 4,20) e seu testemunho convenceu o povo: “Aderiram ao Senhor fiéis em número cada vez maior”. (At 5,14) Mas, dar testemunho tem seu preço. Pedro e os outros apóstolos são lançados na cadeia pública, Tiago é decapitado. (At 5,18; 12,2) O sangue derramado de Estêvão que “viu os céus abertos e o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus”(At 7,56) é a semente da conversão de Saulo. Paulo, o apóstolo das gentes, nunca mais se desviou do “Caminho” (At 9,2), aceitou todo tipo de sofrimento por causa do nome do Senhor (cf. At 9,16; 2 Co 11,23-28), pois “anunciar o Evangelho “tornou-se a paixão de sua vida. Bastava-lhes a graça divina. (cf. 2 Co 12,9)

O Espírito de Deus suscitou em todos os séculos missionárias e missionários, cristãs e cristãos apaixonados, que consagraram sua vida à causa do Evangelho, percorreram terras, atravessaram mares, na busca incansável da grande meta que “toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.” (Fl. 2,11).

Quase dois mil anos passaram. Imbuída do mesmo espírito que fecundou a comunidade primitiva, a Igreja no Brasil lançou o Projeto de Evangelização “Rumo ao Novo Milênio”. A implementação deste Projeto está dando maior coesão à nossa ação evangelizadora e despertando, em muitos cristãos, uma nova paixão pelo anúncio da Boa Nova. Multiplicam-se pelo País afora inúmeras iniciativas no campo missionário: desde o Ministério da Visitação no sudeste às Santas Missões Populares no norte e nordeste, sem contar as mais variadas formas de romarias, encontros, seminários, tríduos, semanas catequéticas e círculos bíblicos. Irmãs e irmãos nossos partem para terras longínquas para “dar de nossa pobreza”. Tudo isto contribui enormemente para recolocar a missão no centro das preocupações da igreja no Brasil. Vivemos um momento de graça.

É neste contexto que apresentamos, com alegria a esperança, mais um subsídio do Projeto de Evangelização da Igreja no Brasil “Rumo ao Novo Milênio”.

Desde o grandioso impulso recebido do COMLA 5 e as reflexões que brotaram durante o processo de atualização das Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, a urgência de um anúncio centrado na pessoa de Jesus impõe-se como um novo espírito eclesial entre nós. Pelo caminho do legalismo e da doutrinação, o Cristo pascal não se dá a conhecer. A graça de todas as graças é encontrar o Cristo Vivo. Precisamos desobstruir o caminho, remover os obstáculos e implodir estruturas obsoletas que impedem a tantos irmãos e irmãs nossos da fazer a experiência do Deus de Jesus Cristo.

O subsídio “Boa Nova já chegou” foi elaborado neste intuito. Ele quer ajudar-nos a fazer emergir, com todo o vigor, a graças recebidas no Batismo. Foi escrito com o coração de quem entende a grandeza da missão. Faz-se necessário usá-lo também com o coração, para superarmos os meros esquemas racionais. Ele não é uma estratégia de evangelização. É a busca sincera de dar pistas à formação de novos evangelizadores e evangelizadoras que possam caminhar, “cheios de coragem” (At. 13,46) e “no fervor do espírito” (At. 18,25), rumo ao novo milênio que se aproxima.

Dom Erwin Kräutler

Bispo do Xingu

Responsável pela Dimensão Missionária da CNBB
Pe. João Panazzolo
Diretor das Pontifícias Obras Missionárias (POM)
i�Bt 1�����or último, Centesimus annus (1991). Deste modo, ao enfrentar situações e problemas sempre novos, foi-se desenvolvendo uma doutrina social católica, que em 2004 foi apresentada de modo orgânico no Compêndio da doutrina social da Igreja, redigido pelo Pontifício Conselho « Justiça e Paz ». O marxismo tinha indicado, na revolução mundial e na sua preparação, a panaceia para a problemática social: através da revolução e consequente colectivização dos meios de produção — asseverava-se em tal doutrina — devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se. Na difícil situação em que hoje nos encontramos por causa também da globalização da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicação fundamental, que propõe válidas orientações muito para além das fronteiras eclesiais: tais orientações — face ao progresso em acto — devem ser analisadas em diálogo com todos aqueles que se preocupam seriamente do homem e do seu mundo.

28. Para definir com maior cuidado a relação entre o necessário empenho em prol da justiça e o serviço da caridade, é preciso anotar duas situações de facto que são fundamentais:

a) A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Agostinho uma vez: « Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? ». [18] Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21), isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. [19] O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar. As duas esferas são distintas, mas sempre em recíproca relação.

A justiça é o objectivo e, consequentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objectivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática; mas, para poder operar rectamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado.

Neste ponto, política e fé tocam-se. A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo — um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. Ao mesmo tempo, porém, ela serve de força purificadora para a própria razão. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a de suas cegueiras e, consequentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A fé consente à razão de realizar melhor a sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio. É aqui que se coloca a doutrina social católica: esta não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado.

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano. E sabe que não é tarefa da Igreja fazer ela própria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal. Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis.

A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justiça trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem.

b) O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. [20] Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda. A Igreja é uma destas forças vivas: nela pulsa a dinâmica do amor suscitado pelo Espírito de Cristo. Este amor não oferece aos homens apenas uma ajuda material, mas também refrigério e cuidado para a alma — ajuda esta muitas vezes mais necessária que o apoio material. A afirmação de que as estruturas justas tornariam supérfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepção materialista do homem: o preconceito segundo o qual o homem viveria « só de pão » (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3) — convicção que humilha o homem e ignora precisamente aquilo que é mais especificamente humano.

29. Deste modo, podemos determinar agora mais concretamente, na vida da Igreja, a relação entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade, por um lado, e a actividade caritativa organizada, por outro. Viu-se que a formação de estruturas justas não é imediatamente um dever da Igreja, mas pertence à esfera da política, isto é, ao âmbito da razão auto-responsável. Nisto, o dever da Igreja é mediato, enquanto lhe compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais, sem as quais não se constroem estruturas justas, nem estas permanecem operativas por muito tempo.

Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade é próprio dos fiéis leigos. Estes, como cidadãos do Estado, são chamados a participar pessoalmente na vida pública. Não podem, pois, abdicar « da múltipla e variada acção económica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum ». [21] Por conseguinte, é missão dos fiéis leigos configurar rectamente a vida social, respeitando a sua legítima autonomia e cooperando, segundo a respectiva competência e sob própria responsabilidade, com os outros cidadãos. [22] Embora as manifestações específicas da caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado, no entanto a verdade é que a caridade deve animar a existência inteira dos fiéis leigos e, consequentemente, também a sua actividade política vivida como « caridade social ». [23]

Caso diverso são as organizações caritativas da Igreja, que constituem um seu opus proprium, um dever que lhe é congénito, no qual ela não se limita a colaborar colateralmente, mas actua como sujeito directamente responsável, realizando o que corresponde à sua natureza. A Igreja nunca poderá ser dispensada da prática da caridade enquanto actividade organizada dos crentes, como aliás nunca haverá uma situação onde não seja precisa a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor.

As múltiplas estruturas de serviço caritativo
no actual contexto social

30. Antes ainda de tentar uma definição do perfil específico das actividades eclesiais ao serviço do homem, quero considerar a situação geral do empenho pela justiça e o amor no mundo actual.

a) Os meios de comunicação de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno, aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos. Se, às vezes, este « estar juntos » suscita incompreensões e tensões, o facto, porém, de agora se chegar de forma muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um apelo a partilhar a sua situação e as suas dificuldades. Cada dia vamo-nos tornando conscientes de quanto se sofre no mundo, apesar dos grandes progressos em campo científico e técnico, por causa de uma miséria multiforme, tanto material como espiritual. Por isso, este nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o próximo necessitado. Sublinhou-o já o Concílio Vaticano II com palavras muito claras: « No nosso tempo, em que os meios de comunicação são mais rápidos, em que quase se venceu a distância entre os homens, (...) a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens ». [24]

Por outro lado — e trata-se de um aspecto provocatório e ao mesmo tempo encorajador do processo de globalização —, o presente põe à nossa disposição inumeráveis instrumentos para prestar ajuda humanitária aos irmãos necessitados, não sendo os menos notáveis entre eles os sistemas modernos para a distribuição de alimento e vestuário, e também para a oferta de habitação e acolhimento. Superando as fronteiras das comunidades nacionais, a solicitude pelo próximo tende, assim, a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro. Justamente o pôs em relevo o Concílio Vaticano II: « Entre os sinais do nosso tempo, é digno de especial menção o crescente e inelutável sentido de solidariedade entre todos os povos ». [25] Os entes do Estado e as associações humanitárias apadrinham iniciativas com tal finalidade, fazendo-o na maior parte dos casos através de subsídios ou descontos fiscais, os primeiros, e pondo à disposição verbas consideráveis, as segundas. E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil supera significativamente a dos indivíduos.

b) Nesta situação, nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboração entre as estruturas estatais e as eclesiais, que se revelaram frutuosas. As estruturas eclesiais, com a transparência da sua acção e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor, poderão animar de maneira cristã também as estruturas civis, favorecendo uma recíproca coordenação que não deixará de potenciar a eficácia do serviço caritativo. [26] Neste contexto, formaram-se também muitas organizações com fins caritativos ou filantrópicos, que procuram, face aos problemas sociais e políticos existentes, alcançar soluções satisfatórias sob o aspecto humanitário. Um fenómeno importante do nosso tempo é a aparição e difusão de diversas formas de voluntariado, que se ocupam duma pluralidade de serviços. [27] Desejo aqui deixar uma palavra de particular apreço e gratidão a todos aqueles que participam, de diversas formas, nestas actividades. Tal empenho generalizado constitui, para os jovens, uma escola de vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem não simplesmente qualquer coisa, mas darem-se a si próprios. À anti-cultura da morte, que se exprime por exemplo na droga, contrapõe-se deste modo o amor que não procura o próprio interesse, mas que, precisamente na disponibilidade a « perder-se a si mesmo » pelo outro (cf. Lc 17, 33 e paralelos), se revela como cultura da vida.

Na Igreja Católica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais, também apareceram novas formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado. São formas nas quais se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligação entre evangelização e obras de caridade. Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor João Paulo II escreveu na sua Encíclica Sollicitudo rei socialis, [28] quando declarou a disponibilidade da Igreja Católica para colaborar com as organizações caritativas destas Igrejas e Comunidades, uma vez que todos nós somos movidos pela mesma motivação fundamental e temos diante dos olhos idêntico objectivo: um verdadeiro humanismo, que reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudá-lo a levar uma vida conforme a esta dignidade. Depois, a Encíclica Ut unum sint voltou a sublinhar que, para o progresso rumo a um mundo melhor, é necessária a voz comum dos cristãos, o seu empenho em « fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades de todos, especialmente dos pobres, humilhados e desprotegidos ». [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas.

O perfil específico da actividade caritativa da Igreja

31. O aumento de organizações diversificadas, que se dedicam ao homem em suas várias necessidades, explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao próximo ter sido inscrito pelo Criador na própria natureza do homem. Mas, o referido aumento é efeito também da presença, no mundo, do cristianismo, que não cessa de despertar e tornar eficaz este imperativo, muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da história. A reforma do paganismo, tentada pelo imperador Juliano o Apóstata, é apenas um exemplo incipiente de tal eficácia. Neste sentido, a força do cristianismo propaga-se muito para além das fronteiras da fé cristã. Por isso, é muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma. Mas, então quais são os elementos constitutivos que formam a essência da caridade cristã e eclesial?

a) Segundo o modelo oferecido pela parábola do bom Samaritano, a caridade cristã é, em primeiro lugar, simplesmente a resposta àquilo que, numa determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc. As organizações caritativas da Igreja, a começar pela Cáritas (diocesana, nacional e internacional), devem fazer o possível para colocar à disposição os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas. Relativamente ao serviço que as pessoas realizam em favor dos doentes, requer-se antes de mais a competência profissional: os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam fazer a coisa justa de modo justo, assumindo também o compromisso de continuar o tratamento. A competência profissional é uma primeira e fundamental necessidade, mas por si só não basta. É que se trata de seres humanos, e estes necessitam sempre de algo mais que um tratamento apenas tecnicamente correcto: têm necessidade de humanidade, precisam da atenção do coração. Todos os que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem distinguir-se pelo facto de que não se limitam a executar habilidosamente a acção conveniente naquele momento, mas dedicam-se ao outro com as atenções sugeridas pelo coração, de modo que ele sinta a sua riqueza de humanidade. Por isso, para tais agentes, além da preparação profissional, requer-se também e sobretudo a « formação do coração »: é preciso levá-los àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu íntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor (cf. Gal 5, 6).

b) A actividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias. Não é um meio para mudar o mundo de maneira ideológica, nem está ao serviço de estratégias mundanas, mas é actualização aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem necessidade. O tempo moderno, sobretudo a partir do Oitocentos, aparece dominado por diversas variantes duma filosofia do progresso, cuja forma mais radical é o marxismo. Uma parte da estratégia marxista é a teoria do empobrecimento: esta defende que, numa situação de poder injusto, quem ajuda o homem com iniciativas de caridade, coloca-se de facto ao serviço daquele sistema de injustiça, fazendo-o resultar, pelo menos até certo ponto, suportável. Deste modo fica refreado o potencial revolucionário e, consequentemente, bloqueada a reviravolta para um mundo melhor. Por isso, se contesta e ataca a caridade como sistema de conservação do status quo. Na realidade, esta é uma filosofia desumana. O homem que vive no presente é sacrificado ao moloch do futuro — um futuro cuja efectiva realização permanece pelo menos duvidosa. Na verdade, a humanização do mundo não pode ser promovida renunciando, de momento, a comportar-se de modo humano. Só se contribui para um mundo melhor, fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixão e em todo o lado onde for possível, independentemente de estratégias e programas de partido. O programa do cristão — o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus — é « um coração que vê ». Este coração vê onde há necessidade de amor, e actua em consequência. Obviamente, quando a actividade caritativa è assumida pela Igreja como iniciativa comunitária, à espontaneidade do indivíduo há que acrescentar também a programação, a previdência, a colaboração com outras instituições idênticas.

c) Além disso, a caridade não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. [30] Isto, porém, não significa que a acção caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre está em jogo o homem todo. Muitas vezes é precisamente a ausência de Deus a raiz mais profunda do sofrimento. Quem realiza a caridade em nome da Igreja, nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja. Sabe que o amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar. O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus é amor (cf. 1 Jo 4, 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a não ser amar. Sabe — voltando às questões anteriores — que o vilipêndio do amor é vilipêndio de Deus e do homem, é a tentativa de prescindir de Deus. Consequentemente, a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor. É dever das organizações caritativas da Igreja reforçar de tal modo esta consciência em seus membros, que estes, através do seu agir — como também do seu falar, do seu silêncio, do seu exemplo —, se tornem testemunhas credíveis de Cristo.

Os responsáveis da acção caritativa da Igreja

32. Por último, devemos ainda fixar a nossa atenção sobre os responsáveis pela acção caritativa da Igreja, a que já aludimos. Das reflexões feitas anteriormente, resulta claramente que o verdadeiro sujeito das várias organizações católicas que realizam um serviço de caridade é a própria Igreja — e isto a todos os níveis, a começar das paróquias passando pelas Igrejas particulares até chegar à Igreja universal. Por isso, foi muito oportuna a instituição do Pontifício Conselho Cor Unum, feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI, como instância da Santa Sé responsável pela orientação e coordenação entre as organizações e as actividades caritativas promovidas pela Igreja Católica. Depois, é cônsono à estrutura episcopal da Igreja o facto de, nas Igrejas particulares, caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apóstolos a primeira responsabilidade pela realização, mesmo actualmente, do programa indicado nos Actos dos Apóstolos (cf. 2, 42-44): a Igreja enquanto família de Deus deve ser, hoje como ontem, um espaço de ajuda recíproca e simultaneamente um espaço de disponibilidade para servir mesmo aqueles que, fora dela, têm necessidade de ajuda. No rito de Ordenação Episcopal, o acto verdadeiro e próprio de consagração é precedido por algumas perguntas ao candidato, nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofício e são-lhe lembrados os deveres do seu futuro ministério. Neste contexto, o Ordenando promete expressamente que será, em nome do Senhor, bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de conforto e ajuda. [31] O Código de Direito Canónico, nos cânones relativos ao ministério episcopal, não trata explicitamente da caridade como âmbito específico da actividade episcopal, falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras de apostolado no respeito da índole própria de cada uma. [32] Recentemente, porém, o Directório para o ministério pastoral dos Bispos aprofundou, de forma mais concreta, o dever da caridade como tarefa intrínseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese, [33] sublinhando que a prática da caridade é um acto da Igreja enquanto tal e que também ela, tal como o serviço da Palavra e dos Sacramentos, faz parte da essência da sua missão originária. [34]

33. No que diz respeito aos colaboradores que realizam, a nível prático, o trabalho caritativo na Igreja, foi dito já o essencial: eles não se devem inspirar nas ideologias do melhoramento do mundo, mas deixarem-se guiar pela fé que actua pelo amor (cf. Gal 5, 6). Por isso, devem ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo, pessoas cujo coração Cristo conquistou com o seu amor, nele despertando o amor ao próximo. O critério inspirador da sua acção deveria ser a afirmação presente na II Carta aos Coríntios: « O amor de Cristo nos constrange » (5, 14). A consciência de que, n'Ele, o próprio Deus Se entregou por nós até à morte, deve induzir-nos a viver, não mais para nós mesmos, mas para Ele e, com Ele, para os outros. Quem ama Cristo, ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressão e instrumento do amor que d'Ele dimana. O colaborador de qualquer organização caritativa católica quer trabalhar com a Igreja, e consequentemente com o Bispo, para que o amor de Deus se espalhe no mundo. Com a sua participação na prática eclesial do amor, quer ser testemunha de Deus e de Cristo e, por isso mesmo, quer fazer bem aos homens gratuitamente.

34. A abertura interior à dimensão católica da Igreja não poderá deixar de predispor o colaborador a sintonizar-se com as outras organizações que estão ao serviço das várias formas de necessidade; mas isso deverá verificar-se no respeito do perfil específico do serviço requerido por Cristo aos seus discípulos. No seu hino à caridade (cf. 1 Cor 13), São Paulo ensina-nos que a caridade é sempre algo mais do que mera actividade: « Ainda que distribua todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita » (v. 3). Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviço eclesial; nele se encontram resumidas todas as reflexões que fiz sobre o amor, ao longo desta Carta Encíclica. A acção prática resulta insuficiente se não for palpável nela o amor pelo homem, um amor que se nutre do encontro com Cristo. A íntima participação pessoal nas necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo: para que o dom não humilhe o outro, devo não apenas dar-lhe qualquer coisa minha, mas dar-me a mim mesmo, devo estar presente no dom como pessoa.

35. Este modo justo de servir torna humilde o agente. Este não assume uma posição de superioridade face ao outro, por mais miserável que possa ser de momento a sua situação. Cristo ocupou o último lugar no mundo — a cruz — e, precisamente com esta humildade radical, nos redimiu e ajuda sem cessar. Quem se acha em condições de ajudar há-de reconhecer que, precisamente deste modo, é ajudado ele próprio também; não é mérito seu nem título de glória o facto de poder ajudar. Esta tarefa é graça. Quanto mais alguém trabalhar pelos outros, tanto melhor compreenderá e assumirá como própria esta palavra de Cristo: « Somos servos inúteis » (Lc 17, 10). Na realidade, ele reconhece que age, não em virtude de uma superioridade ou uma maior eficiência pessoal, mas porque o Senhor lhe concedeu este dom. Às vezes, a excessiva vastidão das necessidades e as limitações do próprio agir poderão expô-lo à tentação do desânimo. Mas é precisamente então que lhe serve de ajuda saber que, em última instância, ele não passa de um instrumento nas mãos do Senhor; libertar-se-á assim da presunção de dever realizar, pessoalmente e sozinho, o necessário melhoramento do mundo. Com humildade, fará o que lhe for possível realizar e, com humildade, confiará o resto ao Senhor. É Deus quem governa o mundo, não nós. Prestamos-Lhe apenas o nosso serviço por quanto podemos e até onde Ele nos dá a força. Mas, fazer tudo o que nos for possível e com a força de que dispomos, tal é o dever que mantém o servo bom de Cristo sempre em movimento: « O amor de Cristo nos constrange » (2 Cor 5, 14).

36. A experiência da incomensurabilidade das necessidades pode, por um lado, fazer-nos cair na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus, pelos vistos, não consegue: a solução universal de todo o problema. Por outro lado, aquela pode tornar-se uma tentação para a inércia a partir da impressão de que, seja como for, nunca se levaria nada a termo. Nesta situação, o contacto vivo com Cristo é a ajuda decisiva para prosseguir pela justa estrada: nem cair numa soberba que despreza o homem e, na realidade, nada constrói, antes até destrói; nem abandonar-se à resignação que impediria de deixar-se guiar pelo amor e, deste modo, servir o homem. A oração, como meio para haurir continuamente força de Cristo, torna-se aqui uma urgência inteiramente concreta. Quem reza não desperdiça o seu tempo, mesmo quando a situação apresenta todas as características duma emergência e parece impelir unicamente para a acção. A piedade não afrouxa a luta contra a pobreza ou mesmo contra a miséria do próximo. A Beata Teresa de Calcutá é um exemplo evidentíssimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oração não só não lesa a eficácia nem a operosidade do amor ao próximo, mas é realmente a sua fonte inexaurível. Na sua carta para a Quaresma de 1996, esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos: « Nós precisamos desta união íntima com Deus na nossa vida quotidiana. E como poderemos obtê-la? Através da oração ».

37. Chegou o momento de reafirmar a importância da oração face ao activismo e ao secularismo que ameaça muitos cristãos empenhados no trabalho caritativo. Obviamente o cristão que reza, não pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu; procura, antes, o encontro com o Pai de Jesus Cristo, pedindo-Lhe que esteja presente, com o conforto do seu Espírito, nele e na sua obra. A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono à sua vontade impedem a degradação do homem, salvam-no da prisão de doutrinas fanáticas e terroristas. Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz de Deus, acusando-O de permitir a miséria sem sentir compaixão pelas suas criaturas. Mas, quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem, sobre quem poderá contar quando a acção humana se demonstrar impotente?

38. É certo que Job pôde lamentar-se com Deus pelo sofrimento, incompreensível e aparentemente injustificado, presente no mundo. Assim se exprime ele na sua dor: « Oh! Se pudesse encontrá-Lo e chegar até ao seu próprio trono! (...) Saberia o que Ele iria responder-me e ouviria o que Ele teria para me dizer. Oporia Ele contra mim o seu grande poder? (...) Por isso, a sua presença me atemoriza; contemplo-O e tremo diante d'Ele. Deus enervou o meu coração, o Omnipotente encheu-me de terror » (23, 3.5-6. 15-16). Muitas vezes não nos é concedido saber o motivo pelo qual Deus retém o seu braço, em vez de intervir. Aliás Ele não nos impede sequer de gritar, como Jesus na cruz: « Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? » (Mt 27, 46). Num diálogo orante, havemos de lançar-Lhe em rosto esta pergunta: « Até quando esperarás, Senhor, Tu que és santo e verdadeiro? » (Ap 6, 10). Santo Agostinho dá a este nosso sofrimento a resposta da fé: « Si comprehendis, non est Deus – se O compreendesses, não seria Deus ». [35] O nosso protesto não quer desafiar a Deus, nem insinuar n'Ele a presença de erro, fraqueza ou indiferença. Para o crente, não é possível pensar que Ele seja impotente, ou então que « esteja a dormir » (cf. 1 Re 18, 27). Antes, a verdade é que até mesmo o nosso clamor constitui, como na boca de Jesus na cruz, o modo extremo e mais profundo de afirmar a nossa fé no seu poder soberano. Na realidade, os cristãos continuam a crer, não obstante todas as incompreensões e confusões do mundo circunstante, « na bondade de Deus e no seu amor pelos homens » (Tt 3, 4). Apesar de estarem imersos como os outros homens na complexidade dramática das vicissitudes da história, eles permanecem inabaláveis na certeza de que Deus é Pai e nos ama, ainda que o seu silêncio seja incompreensível para nós.

39. A fé, a esperança e a caridade caminham juntas. A esperança manifesta-se praticamente nas virtudes da paciência, que não esmorece no bem nem sequer diante de um aparente insucesso, e da humildade, que aceita o mistério de Deus e confia n'Ele mesmo na escuridão. A fé mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por nós e assim gera em nós a certeza vitoriosa de que isto é mesmo verdade: Deus é amor! Deste modo, ela transforma a nossa impaciência e as nossas dúvidas em esperança segura de que Deus tem o mundo nas suas mãos e que, não obstante todas as trevas, Ele vence, como revela de forma esplendorosa o Apocalipse, no final, com as suas imagens impressionantes. A fé, que toma consciência do amor de Deus revelado no coração trespassado de Jesus na cruz, suscita por sua vez o amor. Aquele amor divino é a luz — fundamentalmente, a única — que ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir. O amor é possível, e nós somos capazes de o praticar porque criados à imagem de Deus. Viver o amor e, deste modo, fazer entrar a luz de Deus no mundo: tal é o convite que vos queria deixar com a presente Encíclica.

                                                           Documentos Eclesiais
Carta Encíclica Deus Caritas Est do Sumo Pontífice Bento XVI

 Aos Bispos

 Aos Presbíteros e Aos Diáconos

  As Pessoas Os Fieis Le

 Sobre o Amor Cristão

Introdução


1. « Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele » (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: « Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem ».

Nós cremos no amor de Deus — deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. No seu Evangelho, João tinha expressado este acontecimento com as palavras seguintes: « Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que n'Ele crer (...) tenha a vida eterna » (3, 16). Com a centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel e, ao mesmo tempo, deu a este núcleo uma nova profundidade e amplitude. O crente israelita, de facto, reza todos os dias com as palavras do Livro do Deuteronómio, nas quais sabe que está contido o centro da sua existência: « Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças » (6, 4-5). Jesus uniu — fazendo deles um único preceito — o mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo, contido no Livro do Levítico: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (19, 18; cf. Mc 12, 29-31). Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um « mandamento », mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro.

Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande actualidade e de significado muito concreto. Por isso, na minha primeira Encíclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós. Estão assim indicadas as duas grandes partes que compõem esta Carta, profundamente conexas entre elas. A primeira terá uma índole mais especulativa, pois desejo — ao início do meu Pontificado — especificar nela alguns dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem, juntamente com o nexo intrínseco daquele Amor com a realidade do amor humano. A segunda parte terá um carácter mais concreto, porque tratará da prática eclesial do mandamento do amor ao próximo. O argumento aparece demasiado amplo; uma longa explanação, porém, não entra no objectivo da presente Encíclica. O meu desejo é insistir sobre alguns elementos fundamentais, para deste modo suscitar no mundo um renovado dinamismo de empenhamento na resposta humana ao amor divino.

I PARTE

A UNIDADE DO AMOR
NA CRIAÇÃO
E NA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO

Um problema de linguagem

2. O amor de Deus por nós é questão fundamental para a vida e coloca questões decisivas sobre quem é Deus e quem somos nós. A tal propósito, o primeiro obstáculo que encontramos é um problema de linguagem. O termo « amor » tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes. Embora o tema desta Encíclica se concentre sobre a questão da compreensão e da prática do amor na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, não podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas várias culturas e na linguagem actual.

Em primeiro lugar, recordemos o vasto campo semântico da palavra « amor »: fala-se de amor da pátria, amor à profissão, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre pais e filhos, entre irmãos e familiares, amor ao próximo e amor a Deus. Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. Surge então a questão: todas estas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o amor, apesar de toda a diversidade das suas manifestações, em última instância um só, ou, ao contrário, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?

« Eros » e « agape » – diferença e unidade

3. Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde já que o Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor — eros, philia (amor de amizade) e agape — os escritos neo-testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. [1] Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?

4. Mas, será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros? Vejamos o mundo pré-cristão. Os gregos — aliás de forma análoga a outras culturas — viram no eros sobretudo o inebriamento, a subjugação da razão por parte duma « loucura divina » que arranca o homem das limitações da sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. Deste modo, todas as outras forças quer no céu quer na terra resultam de importância secundária: « Omnia vincit amor — o amor tudo vence », afirma Virgílio nas Bucólicas e acrescenta: « et nos cedamus amori — rendamo-nos também nós ao amor ». [2] Nas religiões, esta posição traduziu-se nos cultos da fertilidade, aos quais pertence a prostituição « sagrada » que prosperava em muitos templos. O eros foi, pois, celebrado como força divina, como comunhão com o Divino.

A esta forma de religião, que contrasta como uma fortíssima tentação com a fé no único Deus, o Antigo Testamento opôs-se com a maior firmeza, combatendo-a como perversão da religiosidade. Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De facto, no templo, as prostitutas, que devem dar o inebriamento do Divino, não são tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para suscitar a « loucura divina »: na realidade, não são deusas, mas pessoas humanas de quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado não é subida, « êxtase » até ao Divino, mas queda, degradação do homem. Fica assim claro que o eros necessita de disciplina, de purificação para dar ao homem, não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser.

5. Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção do eros na história e na actualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe qualquer relação: o amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu « envenenamento », mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.

Isto depende primariamente da constituição do ser humano, que é composto de corpo e alma. O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em íntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificação. Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza. O epicurista Gassendi, gracejando, cumprimentava Descartes com a saudação: « Ó Alma! ». E Descartes replicava dizendo: « Ó Carne! ». [3] Mas, nem o espírito ama sozinho, nem o corpo: é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, é que o homem se torna plenamente ele próprio. Só deste modo é que o amor — o eros — pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza.

Hoje não é raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversário da corporeidade; a realidade é que sempre houve tendências neste sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro « sexo » torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma « coisa » que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, aliás, que ele não vê como um âmbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente agradável e inócuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico. A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar « em êxtase » para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos.

6. Concretamente, como se deve configurar este caminho de ascese e purificação? Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? Uma primeira indicação importante, podemos encontrá-la no Cântico dos Cânticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhecido dos místicos. Segundo a interpretação hoje predominante, as poesias contidas neste livro são originalmente cânticos de amor, talvez previstos para uma festa israelita de núpcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal. Neste contexto, é muito elucidativo o facto de, ao longo do livro, se encontrarem duas palavras distintas para designar o « amor ». Primeiro, aparece a palavra « dodim », um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substituída por « ahabà », que, na versão grega do Antigo Testamento, é traduzida pelo termo de som semelhante « agape », que se tornou, como vimos, o termo característico para a concepção bíblica do amor. Em contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o carácter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o.

Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele procure agora o carácter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade — « apenas esta única pessoa » — e no sentido de ser « para sempre ». O amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade. Sim, o amor é « êxtase »; êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus: « Quem procurar salvaguardar a vida, perdê-la-á, e quem a perder, conservá-la-á » (Lc 17, 33) — disse Jesus; afirmação esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes (cf. Mt 10, 39; 16, 25; Mc 8, 35; Lc 9, 24; Jo 12, 25). Assim descreve Jesus o seu caminho pessoal, que O conduz, através da cruz, à ressurreição: o caminho do grão de trigo que cai na terra e morre e assim dá muito fruto. Partindo do centro do seu sacrifício pessoal e do amor que aí alcança a sua plenitude, Ele, com tais palavras, descreve também a essência do amor e da existência humana em geral.

7. Inicialmente mais filosóficas, as nossas reflexões sobre a essência do amor conduziram-nos agora, pela sua dinâmica interior, à fé bíblica. Ao princípio, colocou-se o problema de saber se os vários, ou melhor opostos, significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro. Mas, acima de tudo, surgiu a questão seguinte: se a mensagem sobre o amor, que nos é anunciada pela Bíblia e pela Tradição da Igreja, teria algo a ver com a experiência humana comum do amor ou se, pelo contrário, se opusesse a ela. A este respeito, fomos dar com duas palavras fundamentais: eros como termo para significar o amor « mundano » e agape como expressão do amor fundado sobre a fé e por ela plasmado. As duas concepções aparecem frequentemente contrapostas como amor « ascendente » e amor « descendente ». Existem outras classificações afins como, por exemplo, a distinção entre amor possessivo e amor oblativo (amor concupiscentiæ – amor benevolentiæ), à qual, às vezes, se acrescenta ainda o amor que procura o próprio interesse.

No debate filosófico e teológico, estas distinções foram muitas vezes radicalizadas até ao ponto de as colocar em contraposição: tipicamente cristão seria o amor descendente, oblativo, ou seja, a agape; ao invés, a cultura não cristã, especialmente a grega, caracterizar-se-ia pelo amor ascendente, ambicioso e possessivo, ou seja, pelo eros. Se se quisesse levar ao extremo esta antítese, a essência do cristianismo terminaria desarticulada das relações básicas e vitais da existência humana e constituiria um mundo independente, considerado talvez admirável, mas decididamente separado do conjunto da existência humana. Na realidade, eros e agape — amor ascendente e amor descendente — nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral. Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente — fascinação pela grande promessa de felicidade — depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará « existir para » o outro. Assim se insere nele o momento da agape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza. Por outro lado, o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom. Certamente, o homem pode — como nos diz o Senhor — tornar-se uma fonte donde correm rios de água viva (cf. Jo 7, 37-38); mas, para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da fonte primeira e originária que é Jesus Cristo, de cujo coração trespassado brota o amor de Deus (cf. Jo 19, 34).

Os Padres viram simbolizada de várias maneiras, na narração da escada de Jacob, esta conexão indivisível entre subida e descida, entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o dom recebido. Naquele texto bíblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu, assente na pedra que lhe servia de travesseiro, uma escada que chegava até ao céu, pela qual subiam e desciam os anjos de Deus (cf. Gn 28, 12; Jo 1, 51). Particularmente interessante é a interpretação que dá o Papa Gregório Magno desta visão, na sua Regra pastoral. O bom pastor — diz ele — deve estar radicado na contemplação. De facto, só assim lhe será possível acolher de tal modo no seu íntimo as necessidades dos outros, que estas se tornem suas: « per pietatis viscera in se infirmitatem cæterorum transferat ». [4] Neste contexto, São Gregório alude a São Paulo que foi arrebatado para as alturas até aos maiores mistérios de Deus e precisamente desta forma, quando desce, é capaz de fazer-se tudo para todos (cf. 2 Cor 12, 2-4; 1 Cor 9, 22). Além disso, indica o exemplo de Moisés que repetidamente entra na tenda sagrada, permanecendo em diálogo com Deus para poder assim, a partir de Deus, estar à disposição do seu povo. « Dentro [da tenda] arrebatado até às alturas mediante a contemplação, fora [da tenda] deixa-se encalçar pelo peso dos que sofrem: Intus in contemplationem rapitur, foris infirmantium negotiis urgetur ». [5]

8. Encontramos, assim, uma primeira resposta, ainda bastante genérica, para as duas questões atrás expostas: no fundo, o « amor » é uma única realidade, embora com distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais. Mas, quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente também que a fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo contraposto àquele fenómeno humano originário que é o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificá-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimensões. Esta novidade da fé bíblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem.

A novidade da fé bíblica

9. Antes de mais nada, temos a nova imagem de Deus. Nas culturas que circundam o mundo da Bíblia, a imagem de deus e dos deuses permanece, tudo somado, pouco clara e em si mesma contraditória. No itinerário da fé bíblica, ao invés, vai-se tornando cada vez mais claro e unívoco aquilo que a oração fundamental de Israel, o Shema, resume nestas palavras: « Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! » (Dt 6, 4). Existe um único Deus, que é o Criador do céu e da terra, e por isso é também o Deus de todos os homens. Dois factos se singularizam neste esclarecimento: que verdadeiramente todos os outros deuses não são Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus, é criada por Ele. Certamente a ideia de uma criação existe também alhures, mas só aqui aparece perfeitamente claro que não um deus qualquer, mas o único Deus verdadeiro, Ele mesmo, é o autor de toda a realidade; esta provém da força da sua Palavra criadora. Isto significa que esta sua criatura Lhe é querida, precisamente porque foi desejada por Ele mesmo, foi « feita » por Ele. E assim aparece agora o segundo elemento importante: este Deus ama o homem. A força divina que Aristóteles, no auge da filosofia grega, procurou individuar mediante a reflexão, é certamente para cada ser objecto do desejo e do amor — como realidade amada esta divindade move o mundo [6] —, mas ela mesma não necessita de nada e não ama, é somente amada. Ao contrário, o único Deus em que Israel crê, ama pessoalmente. Além disso, o seu amor é um amor de eleição: entre todos os povos, Ele escolhe Israel e ama-o — mas com a finalidade de curar, precisamente deste modo, a humanidade inteira. Ele ama, e este seu amor pode ser qualificado sem dúvida como eros, que no entanto é totalmente agape também. [7]

Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixão de Deus pelo seu povo, com arrojadas imagens eróticas. A relação de Deus com Israel é ilustrada através das metáforas do noivado e do matrimónio; consequentemente, a idolatria é adultério e prostituição. Assim, se alude concretamente — como vimos — aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros, mas ao mesmo tempo é descrita também a relação de fidelidade entre Israel e o seu Deus. A história de amor de Deus com Israel consiste, na sua profundidade, no facto de que Ele dá a Torah, isto é, abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a estrada do verdadeiro humanismo. Por seu lado, o homem, vivendo na fidelidade ao único Deus, sente-se a si próprio como aquele que é amado por Deus e descobre a alegria na verdade, na justiça — a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial: « Quem terei eu nos céus? Além de Vós, nada mais anseio sobre a terra (...). O meu bem é estar perto de Deus » (Sal 73/72, 25.28).

10. O eros de Deus pelo homem — como dissemos — é ao mesmo tempo totalmente agape. E não só porque é dado de maneira totalmente gratuita, sem mérito algum precedente, mas também porque é amor que perdoa. Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensão da agape no amor de Deus pelo homem, que supera largamente o aspecto da gratuidade. Israel cometeu « adultério », rompeu a Aliança; Deus deveria julgá-lo e repudiá-lo. Mas precisamente aqui se revela que Deus é Deus, e não homem: « Como te abandonarei, ó Efraim? Entregar-te-ei, ó Israel? O meu coração dá voltas dentro de mim, comove-se a minha compaixão. Não desafogarei o furor da minha cólera, não destruirei Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou Santo no meio de ti » (Os 11, 8-9). O amor apaixonado de Deus pelo seu povo — pelo homem — é ao mesmo tempo um amor que perdoa. E é tão grande, que chega a virar Deus contra Si próprio, o seu amor contra a sua justiça. Nisto, o cristão vê já esboçar-se veladamente o mistério da Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-Se feito Ele próprio homem, segue-o até à morte e, deste modo, reconcilia justiça e amor.

O aspecto filosófico e histórico-religioso saliente nesta visão da Bíblia é o facto de, por um lado, nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafísica de Deus: Deus é absolutamente a fonte originária de todo o ser; mas este princípio criador de todas as coisas — o Logos, a razão primordial — é, ao mesmo tempo, um amante com toda a paixão de um verdadeiro amor. Deste modo, o eros é enobrecido ao máximo, mas simultaneamente tão purificado que se funde com a agape. Daqui podemos compreender por que a recepção do Cântico dos Cânticos no cânone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no sentido de que aqueles cânticos de amor, no fundo, descreviam a relação de Deus com o homem e do homem com Deus. E, assim, o referido livro tornou-se, tanto na literatura cristã como na judaica, uma fonte de conhecimento e de experiência mística em que se exprime a essência da fé bíblica: na verdade, existe uma unificação do homem com Deus — o sonho originário do homem —, mas esta unificação não é confundir-se, um afundar no oceano anónimo do Divino; é unidade que cria amor, na qual ambos — Deus e o homem — permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa só: « Aquele, porém, que se une ao Senhor constitui, com Ele, um só espírito » — diz São Paulo (1 Cor 6, 17).

11. Como vimos, a primeira novidade da fé bíblica consiste na imagem de Deus; a segunda, essencialmente ligada a ela, encontramo-la na imagem do homem. A narração bíblica da criação fala da solidão do primeiro homem, Adão, querendo Deus pôr a seu lado um auxílio. Dentre todas as criaturas, nenhuma pôde ser para o homem aquela ajuda de que necessita, apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves, integrando-os assim no contexto da sua vida. Então, de uma costela do homem, Deus plasma a mulher. Agora Adão encontra a ajuda de que necessita: « Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne » (Gn 2, 23). Na base desta narração, é possível entrever concepções semelhantes às que aparecem, por exemplo, no mito referido por Platão, segundo o qual o homem originariamente era esférico, porque completo em si mesmo e auto-suficiente. Mas, como punição pela sua soberba, foi dividido ao meio por Zeus, de tal modo que agora sempre anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade. [8] Na narração bíblica, não se fala de punição; porém, a ideia de que o homem de algum modo esteja incompleto, constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a sua totalidade, isto é, a ideia de que, só na comunhão com o outro sexo, possa tornar-se « completo », está sem dúvida presente. E, deste modo, a narração bíblica conclui com uma profecia sobre Adão: « Por este motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne » (Gn 2, 24).

Aqui há dois aspectos importantes: primeiro, o eros está de certo modo enraizado na própria natureza do homem; Adão anda à procura e « deixa o pai e a mãe » para encontrar a mulher; só no seu conjunto é que representam a totalidade humana, tornam-se « uma só carne ». Não menos importante é o segundo aspecto: numa orientação baseada na criação, o eros impele o homem ao matrimónio, a uma ligação caracterizada pela unicidade e para sempre; deste modo, e somente assim, é que se realiza a sua finalidade íntima. À imagem do Deus monoteísta corresponde o matrimónio monogâmico. O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano. Esta estreita ligação entre eros e matrimónio na Bíblia quase não encontra paralelos literários fora da mesma.

Jesus Cristo – o amor encarnado de Deus

12. Apesar de termos falado até agora prevalentemente do Antigo Testamento, já se deixou clara a íntima compenetração dos dois Testamentos como única Escritura da fé cristã. A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas ideias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos — um incrível realismo. Já no Antigo Testamento a novidade bíblica não consistia simplesmente em noções abstratas, mas na acção imprevisível e, de certa forma, inaudita de Deus. Esta acção de Deus ganha agora a sua forma dramática devido ao facto de que, em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da « ovelha perdida », a humanidade sofredora e transviada. Quando Jesus fala, nas suas parábolas, do pastor que vai atrás da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras, mas constituem a explicação do seu próprio ser e agir. Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo — o amor na sua forma mais radical. O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala João (cf. 19, 37), compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Encíclica: « Deus é amor » (1 Jo 4, 8). É lá que esta verdade pode ser contemplada. E começando de lá, pretende-se agora definir em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristão encontra o caminho do seu viver e amar.

13. Jesus deu a este acto de oferta uma presença duradoura através da instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. Antecipa a sua morte e ressurreição entregando-Se já naquela hora aos seus discípulos, no pão e no vinho, a Si próprio, ao seu corpo e sangue como novo maná (cf. Jo 6, 31-33). Se o mundo antigo tinha sonhado que, no fundo, o verdadeiro alimento do homem — aquilo de que este vive enquanto homem — era o Logos, a sabedoria eterna, agora este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para nós — como amor. A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação. A imagem do matrimónio entre Deus e Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebível: o que era um estar na presença de Deus torna-se agora, através da participação na doação de Jesus, comunhão no seu corpo e sangue, torna-se união. A « mística » do Sacramento, que se funda no abaixamento de Deus até nós, é de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer mística elevação do homem poderia realizar.

14. Temos agora de prestar atenção a outro aspecto: a « mística » do Sacramento tem um carácter social, porque, na comunhão sacramental, eu fico unido ao Senhor como todos os demais comungantes: « Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão » — diz São Paulo (1 Cor 10, 17). A união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou tornarão Seus. A comunhão tira-me para fora de mim mesmo projectando-me para Ele e, deste modo, também para a união com todos os cristãos. Tornamo-nos « um só corpo », fundidos todos numa única existência. O amor a Deus e o amor ao próximo estão agora verdadeiramente juntos: o Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que o termo agape se tenha tornado também um nome da Eucaristia: nesta a agape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua acção em nós e através de nós. Só a partir desta fundamentação cristológico-sacramental é que se pode entender correctamente o ensinamento de Jesus sobre o amor. A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo, a derivação de toda a vida de fé da centralidade deste preceito não é uma simples moral que possa, depois, subsistir autonomamente ao lado da fé em Cristo e da sua re-actualização no Sacramento: fé, culto e ethos compenetram-se mutuamente como uma única realidade que se configura no encontro com a agape de Deus. Aqui, a habitual contraposição entre culto e ética simplesmente desaparece. No próprio « culto », na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar, por sua vez, os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido, é em si mesma fragmentária. Por outro lado — como adiante havemos de considerar de modo mais detalhado — o « mandamento » do amor só se torna possível porque não é mera exigência: o amor pode ser « mandado », porque antes nos é dado.

15. É a partir deste princípio que devem ser entendidas também as grandes parábolas de Jesus. O rico avarento (cf. Lc 16, 19-31) implora, do lugar do suplício, que os seus irmãos sejam informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava necessidade. Jesus recolhe, por assim dizer, aquele grito de socorro e repete-o para nos acautelar e reconduzir ao bom caminho. A parábola do bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37) leva a dois esclarecimentos importantes. Enquanto o conceito de « próximo », até então, se referia essencialmente aos concidadãos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de Israel, ou seja, à comunidade solidária de um país e de um povo, agora este limite é abolido. Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é o meu próximo. O conceito de próximo fica universalizado, sem deixar todavia de ser concreto. Apesar da sua extensão a todos os homens, não se reduz à expressão de um amor genérico e abstracto, em si mesmo pouco comprometedor, mas requer o meu empenho prático aqui e agora. Continua a ser tarefa da Igreja interpretar sempre de novo esta ligação entre distante e próximo na vida prática dos seus membros. É preciso, enfim, recordar de modo particular a grande parábola do Juízo final (cf. Mt 25, 31-46), onde o amor se torna o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana. Jesus identifica-Se com os necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. « Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40). Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus.

Amor a Deus e amor ao próximo

16. Depois de termos reflectido sobre a essência do amor e o seu significado na fé bíblica, resta uma dupla pergunta a propósito do nosso comportamento. A primeira: é realmente possível amar a Deus, mesmo sem O ver? E a outra: o amor pode ser mandado? Contra o duplo mandamento do amor, existe uma dupla objecção que se faz sentir nestas perguntas: ninguém jamais viu a Deus — como poderemos amá-Lo? Mais: o amor não pode ser mandado; é, em definitivo, um sentimento que pode existir ou não, mas não pode ser criado pela vontade. A Escritura parece dar o seu aval à primeira objecção, quando afirma: « Se alguém disser: "Eu amo a Deus", mas odiar a seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama a seu irmão ao qual vê, como pode amar a Deus, que não vê? » (1 Jo 4, 20). Este texto, porém, não exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossível; pelo contrário, em todo o contexto da I Carta de João agora citada, tal amor é explicitamente requerido. Nela se destaca o nexo indivisível entre o amor a Deus e o amor ao próximo: um exige tão estreitamente o outro que a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive, o odiar. O citado versículo joanino deve, antes, ser interpretado no sentido de que o amor ao próximo é uma estrada para encontrar também a Deus, e que o fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus.

17. Com efeito, ninguém jamais viu a Deus tal como Ele é em Si mesmo. E, contudo, Deus não nos é totalmente invisível, não se deixou ficar pura e simplesmente inacessível a nós. Deus amou-nos primeiro — diz a Carta de João citada (cf. 4, 10) — e este amor de Deus apareceu no meio de nós, fez-se visível quando Ele « enviou o seu Filho unigénito ao mundo, para que, por Ele, vivamos » (1 Jo 4, 9). Deus fez-Se visível: em Jesus, podemos ver o Pai (cf. Jo 14, 9). Existe, com efeito, uma múltipla visibilidade de Deus. Na história de amor que a Bíblia nos narra, Ele vem ao nosso encontro, procura conquistar-nos — até à Última Ceia, até ao Coração trespassado na cruz, até às aparições do Ressuscitado e às grandes obras pelas quais Ele, através da acção dos Apóstolos, guiou o caminho da Igreja nascente. Também na sucessiva história da Igreja, o Senhor não esteve ausente: incessantemente vem ao nosso encontro, através de homens nos quais Ele Se revela; através da sua Palavra, nos Sacramentos, especialmente na Eucaristia. Na liturgia da Igreja, na sua oração, na comunidade viva dos crentes, nós experimentamos o amor de Deus, sentimos a sua presença e aprendemos deste modo também a reconhecê-la na nossa vida quotidiana. Ele amou-nos primeiro, e continua a ser o primeiro a amar-nos; por isso, também nós podemos responder com o amor. Deus não nos ordena um sentimento que não possamos suscitar em nós próprios. Ele ama-nos, faz-nos ver e experimentar o seu amor, e desta « antecipação » de Deus pode, como resposta, despontar também em nós o amor.

No desenrolar deste encontro, revela-se com clareza que o amor não é apenas um sentimento. Os sentimentos vão e vêm. O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial, mas não é a totalidade do amor. Ao início, falámos do processo das purificações e amadurecimentos, pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo, se torna amor no significado cabal da palavra. É próprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e incluir, por assim dizer, o homem na sua totalidade. O encontro com as manifestações visíveis do amor de Deus pode suscitar em nós o sentimento da alegria, que nasce da experiência de ser amados. Tal encontro, porém, chama em causa também a nossa vontade e o nosso intelecto. O reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade à d'Ele une intelecto, vontade e sentimento no acto globalizante do amor. Mas isto é um processo que permanece continuamente em caminho: o amor nunca está « concluído » e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por isso mesmo, permanece fiel a si próprio. Idem velle atque idem nolle [9] — querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa é, segundo os antigos, o autêntico conteúdo do amor: um tornar-se semelhante ao outro, que leva à união do querer e do pensar. A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no facto de que esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impõem de fora os mandamentos, mas é a minha própria vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio. [10] Cresce então o abandono em Deus, e Deus torna-Se a nossa alegria (cf. Sal 73/72, 23-28).

18. Revela-se, assim, como possível o amor ao próximo no sentido enunciado por Jesus, na Bíblia. Consiste precisamente no facto de que eu amo, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo. O seu amigo é meu amigo. Para além do aspecto exterior do outro, dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor, de atenção, que eu não lhe faço chegar somente através das organizações que disso se ocupam, aceitando-o talvez por necessidade política. Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao outro muito mais do que as coisas externamente necessárias: posso dar-lhe o olhar de amor de que ele precisa. Aqui se vê a interacção que é necessária entre o amor a Deus e o amor ao próximo, de que fala com tanta insistência a I Carta de João. Se na minha vida falta totalmente o contacto com Deus, posso ver no outro sempre e apenas o outro e não consigo reconhecer nele a imagem divina. Mas, se na minha vida negligencio completamente a atenção ao outro, importando-me apenas com ser « piedoso » e cumprir os meus « deveres religiosos », então definha também a relação com Deus. Neste caso, trata-se duma relação « correcta », mas sem amor. Só a minha disponibilidade para ir ao encontro do próximo e demonstrar-lhe amor é que me torna sensível também diante de Deus. Só o serviço ao próximo é que abre os meus olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama. Os Santos — pensemos, por exemplo, na Beata Teresa de Calcutá — hauriram a sua capacidade de amar o próximo, de modo sempre renovado, do seu encontro com o Senhor eucarístico e, vice-versa, este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviço deles aos outros. Amor a Deus e amor ao próximo são inseparáveis, constituem um único mandamento. Mas, ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro. Deste modo, já não se trata de um « mandamento » que do exterior nos impõe o impossível, mas de uma experiência do amor proporcionada do interior, um amor que, por sua natureza, deve ser ulteriormente comunicado aos outros. O amor cresce através do amor. O amor é « divino », porque vem de Deus e nos une a Deus, e, através deste processo unificador, transforma-nos em um Nós, que supera as nossas divisões e nos faz ser um só, até que, no fim, Deus seja « tudo em todos » (1 Cor 15, 28).

II PARTE

CARITAS – A PRÁTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO « COMUNIDADE DE AMOR »

A caridade da Igreja como manifestação do amor trinitário

19. « Se vês a caridade, vês a Trindade » — escrevia Santo Agostinho. [11] Ao longo das reflexões anteriores, pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf. Jo 19, 37; Zc 12, 10), reconhecendo o desígnio do Pai que, movido pelo amor (cf. Jo 3, 16), enviou o Filho unigénito ao mundo para redimir o homem. Quando morreu na cruz, Jesus — como indica o evangelista — « entregou o Espírito » (cf. Jo 19, 30), prelúdio daquele dom do Espírito Santo que Ele havia de realizar depois da ressurreição (cf. Jo 20, 22). Desde modo, se actuaria a promessa dos « rios de água viva » que, graças à efusão do Espírito, haviam de emanar do coração dos crentes (cf. Jo 7, 38-39). De facto, o Espírito é aquela força interior que harmoniza seus corações com o coração de Cristo e leva-os a amar os irmãos como Ele os amou, quando Se inclinou para lavar os pés dos discípulos (cf. Jo 13, 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida por todos (cf. Jo 13, 1; 15, 13).

O Espírito é também força que transforma o coração da comunidade eclesial, para ser, no mundo, testemunha do amor do Pai, que quer fazer da humanidade uma única família, em seu Filho. Toda a actividade da Igreja é manifestação dum amor que procura o bem integral do homem: procura a sua evangelização por meio da Palavra e dos Sacramentos, empreendimento este muitas vezes heróico nas suas realizações históricas; e procura a sua promoção nos vários âmbitos da vida e da actividade humana. Portanto, é amor o serviço que a Igreja exerce para acorrer constantemente aos sofrimentos e às necessidades, mesmo materiais, dos homens. É sobre este aspecto, sobre este serviço da caridade, que desejo deter-me nesta segunda parte da Encíclica.

A caridade como dever da Igreja

20. O amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de mais para cada um dos fiéis, mas é-o também para a comunidade eclesial inteira, e isto a todos os seus níveis: desde a comunidade local passando pela Igreja particular até à Igreja universal na sua globalidade. A Igreja também enquanto comunidade deve praticar o amor. Consequência disto é que o amor tem necessidade também de organização enquanto pressuposto para um serviço comunitário ordenado. A consciência de tal dever teve relevância constitutiva na Igreja desde os seus inícios: « Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um » (Act 2, 44-45). Lucas conta-nos isto no quadro duma espécie de definição da Igreja, entre cujos elementos constitutivos enumera a adesão ao « ensino dos Apóstolos », à « comunhão » (koinonia), à « fracção do pão » e às « orações » (cf. Act 2, 42). O elemento da « comunhão » (koinonia), que aqui ao início não é especificado, aparece depois concretizado nos versículos anteriormente citados: consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum, pelo que, no seu meio, já não subsiste a diferença entre ricos e pobres (cf. também Act 4, 32-37). Com o crescimento da Igreja, esta forma radical de comunhão material — verdade se diga — não pôde ser mantida. Mas o núcleo essencial ficou: no seio da comunidade dos crentes não deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários para uma vida condigna.

21. Um passo decisivo na difícil busca de soluções para realizar este princípio eclesial fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o início do ofício diaconal (cf. Act 6, 5-6). De facto, na Igreja primitiva tinha-se gerado, na distribuição quotidiana às viúvas, uma disparidade entre a parte de língua hebraica e a de língua grega. Os Apóstolos, a quem estavam confiados antes de mais a « oração » (Eucaristia e Liturgia) e o « serviço da Palavra », sentiram-se excessivamente carregados pelo « serviço das mesas »; decidiram, por isso, reservar para eles o ministério principal e criar para a outra mansão, também ela necessária na Igreja, um organismo de sete pessoas. Mas este grupo não devia realizar um serviço meramente técnico de distribuição: deviam ser homens « cheios do Espírito Santo e de sabedoria » (cf. Act 6, 1-6). Quer dizer que o serviço social que tinham de cumprir era concreto sem dúvida alguma, mas ao mesmo tempo era também um serviço espiritual; tratava-se, na verdade, de um ofício verdadeiramente espiritual, que realizava um dever essencial da Igreja, o do amor bem ordenado ao próximo. Com a formação deste organismo dos Sete, a « diaconia » — o serviço do amor ao próximo exercido comunitariamente e de modo ordenado — ficara instaurada na estrutura fundamental da própria Igreja.

22. Com o passar dos anos e a progressiva difusão da Igreja, a prática da caridade confirmou-se como um dos seus âmbitos essenciais, juntamente com a administração dos Sacramentos e o anúncio da Palavra: praticar o amor para com as viúvas e os órfãos, os presos, os doentes e necessitados de qualquer género pertence tanto à sua essência como o serviço dos Sacramentos e o anúncio do Evangelho. A Igreja não pode descurar o serviço da caridade, tal como não pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra. Para o demonstrar, bastam alguns exemplos. O mártir Justino († por 155), no contexto da celebração dominical dos cristãos, descreve também a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal. As pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades, cada uma o que quer; o Bispo serve-se disso para sustentar os órfãos, as viúvas e aqueles que por doença ou outros motivos passam necessidade, e também os presos e os forasteiros. [12] O grande escritor cristão Tertuliano († depois de 220) conta como a solicitude dos cristãos pelos necessitados de qualquer género suscitava a admiração dos pagãos. [13] E, quando Inácio de Antioquia († por 117) designa a Igreja de Roma como aquela que « preside à caridade (agape) », [14] pode-se supor que ele quisesse, com tal definição, exprimir de qualquer modo também a sua actividade caritativa concreta.

23. Neste contexto, pode revelar-se útil uma referência às estruturas jurídicas primitivas que tinham a ver com o serviço da caridade na Igreja. A meados do século IV ganha forma no Egipto a chamada « diaconia », que é, nos diversos mosteiros, a instituição responsável pelo conjunto das actividades assistenciais, pelo serviço precisamente da caridade. A partir destes inícios, desenvolve-se até ao século VI no Egipto uma corporação com plena capacidade jurídica, à qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuição pública. No Egipto, não só cada mosteiro mas também cada diocese acabou por ter a sua diaconia — uma instituição que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente. O Papa Gregório Magno († 604) fala da diaconia de Nápoles. Relativamente a Roma, as diaconias são documentadas a partir dos séculos VII e VIII; mas naturalmente já antes, e logo desde os primórdios, a actividade assistencial aos pobres e doentes, segundo os princípios da vida cristã expostos nos Actos dos Apóstolos, era parte essencial da Igreja de Roma. Este dever encontra uma sua viva expressão na figura do diácono Lourenço († 258). A dramática descrição do seu martírio era já conhecida por Santo Ambrósio († 397) e, no seu núcleo, mostra-nos seguramente a figura autêntica do Santo. Após a prisão dos seus irmãos na fé e do Papa, a ele, como responsável pelo cuidado dos pobres de Roma, fora concedido mais algum tempo de liberdade, para recolher os tesouros da Igreja e entregá-los às autoridades civis. Lourenço distribuiu o dinheiro disponível pelos pobres e, depois, apresentou estes às autoridades como sendo o verdadeiro tesouro da Igreja. [15] Independentemente da credibilidade histórica que se queira atribuir a tais particulares, Lourenço ficou presente na memória da Igreja como grande expoente da caridade eclesial.

24. Uma alusão merece a figura do imperador Juliano o Apóstata († 363), porque demonstra uma vez mais quão essencial era para a Igreja dos primeiros séculos a caridade organizada e praticada. Criança de seis anos, Juliano assistira ao assassínio de seu pai, de seu irmão e doutros familiares pelas guardas do palácio imperial; esta brutalidade atribuiu-a ele — com razão ou sem ela — ao imperador Constâncio, que se fazia passar por um grande cristão. Em consequência disso, a fé cristã acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas. Feito imperador, decide restaurar o paganismo, a antiga religião romana, mas ao mesmo tempo reformá-lo para se tornar realmente a força propulsora do império. Para isso, inspirou-se largamente no cristianismo. Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes. Estes deviam promover o amor a Deus e ao próximo. Numa das suas cartas, [16] escrevera que o único aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja. Por isso, considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir, a par do sistema de caridade da Igreja, uma actividade equivalente na sua religião. Os « Galileus » — dizia ele — tinham conquistado assim a sua popularidade. Havia que imitá-los, senão mesmo superá-los. Deste modo, o imperador confirmava que a caridade era uma característica decisiva da comunidade cristã, da Igreja.

25. Chegados aqui, registemos dois dados essenciais tirados das reflexões feitas:

a) A natureza íntima da Igreja exprime-se num tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia). São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros. Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência. [17]

b) A Igreja é a família de Deus no mundo. Nesta família, não deve haver ninguém que sofra por falta do necessário. Ao mesmo tempo, porém, a caritas-agape estende-se para além das fronteiras da Igreja; a parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado « por acaso » (cf. Lc 10, 31), seja ele quem for. Mas, ressalvada esta universalidade do mandamento do amor, existe também uma exigência especificamente eclesial — precisamente a exigência de que, na própria Igreja enquanto família, nenhum membro sofra porque passa necessidade. Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gálatas: « Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos, mas principalmente para com os irmãos na fé » (6, 10).

Justiça e caridade

26. Desde o Oitocentos, vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma objecção, explanada depois com insistência sobretudo pelo pensamento marxista. Os pobres — diz-se — não teriam necessidade de obras de caridade, mas de justiça. As obras de caridade — as esmolas — seriam na realidade, para os ricos, uma forma de subtraírem-se à instauração da justiça e tranquilizarem a consciência, mantendo as suas posições e defraudando os pobres nos seus direitos. Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenção das condições existentes, seria necessário criar uma ordem justa, na qual todos receberiam a sua respectiva parte de bens da terra e, por conseguinte, já não teriam necessidade das obras de caridade. Algo de verdade existe — devemos reconhecê-lo — nesta argumentação, mas há também, e não pouco, de errado. É verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecução da justiça e que a finalidade de uma justa ordem social é garantir a cada um, no respeito do princípio da subsidiariedade, a própria parte nos bens comuns. Isto mesmo sempre o têm sublinhado a doutrina cristã sobre o Estado e a doutrina social da Igreja. Do ponto de vista histórico, a questão da justa ordem da colectividade entrou numa nova situação com a formação da sociedade industrial no Oitocentos. A aparição da indústria moderna dissolveu as antigas estruturas sociais e provocou, com a massa dos assalariados, uma mudança radical na composição da sociedade, no seio da qual a relação entre capital e trabalho se tornou a questão decisiva — questão que, sob esta forma, era desconhecida antes. As estruturas de produção e o capital tornaram-se o novo poder que, colocado nas mãos de poucos, comportava para as massas operárias uma privação de direitos, contra a qual era preciso revoltar-se.

27. Forçoso é admitir que os representantes da Igreja só lentamente se foram dando conta de que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade. Não faltaram pioneiros: um deles, por exemplo, foi o Bispo Ketteler de Mogúncia († 1877). Como resposta às necessidades concretas, surgiram também círculos, associações, uniões, federações e sobretudo novas congregações religiosas que, no Oitocentos, desceram em campo contra a pobreza, as doenças e as situações de carência no sector educativo. Em 1891, entrou em cena o magistério pontifício com a Encíclica Rerum novarum de Leão XIII. Seguiu-se-lhe a Encíclica de Pio XI Quadragesimo anno, em 1931. O Beato Papa João XXIII publicou, em 1961, a Encíclica Mater et Magistra, enquanto Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio (1967) e na Carta Apostólica Octogesima adveniens (1971), analisou com afinco a problemática social, que entretanto se tinha agravado sobretudo na América Latina. O meu grande predecessor João Paulo II deixou-nos uma trilogia de Encíclicas sociais: Laborem exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987) e, por último, Centesimus annus (1991). Deste modo, ao enfrentar situações e problemas sempre novos, foi-se desenvolvendo uma doutrina social católica, que em 2004 foi apresentada de modo orgânico no Compêndio da doutrina social da Igreja, redigido pelo Pontifício Conselho « Justiça e Paz ». O marxismo tinha indicado, na revolução mundial e na sua preparação, a panaceia para a problemática social: através da revolução e consequente colectivização dos meios de produção — asseverava-se em tal doutrina — devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se. Na difícil situação em que hoje nos encontramos por causa também da globalização da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicação fundamental, que propõe válidas orientações muito para além das fronteiras eclesiais: tais orientações — face ao progresso em acto — devem ser analisadas em diálogo com todos aqueles que se preocupam seriamente do homem e do seu mundo.

28. Para definir com maior cuidado a relação entre o necessário empenho em prol da justiça e o serviço da caridade, é preciso anotar duas situações de facto que são fundamentais:

a) A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Agostinho uma vez: « Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? ». [18] Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21), isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. [19] O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar. As duas esferas são distintas, mas sempre em recíproca relação.

A justiça é o objectivo e, consequentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objectivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática; mas, para poder operar rectamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado.

Neste ponto, política e fé tocam-se. A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo — um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. Ao mesmo tempo, porém, ela serve de força purificadora para a própria razão. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a de suas cegueiras e, consequentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A fé consente à razão de realizar melhor a sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio. É aqui que se coloca a doutrina social católica: esta não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado.

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano. E sabe que não é tarefa da Igreja fazer ela própria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal. Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis.

A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justiça trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem.

b) O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. [20] Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda. A Igreja é uma destas forças vivas: nela pulsa a dinâmica do amor suscitado pelo Espírito de Cristo. Este amor não oferece aos homens apenas uma ajuda material, mas também refrigério e cuidado para a alma — ajuda esta muitas vezes mais necessária que o apoio material. A afirmação de que as estruturas justas tornariam supérfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepção materialista do homem: o preconceito segundo o qual o homem viveria « só de pão » (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3) — convicção que humilha o homem e ignora precisamente aquilo que é mais especificamente humano.

29. Deste modo, podemos determinar agora mais concretamente, na vida da Igreja, a relação entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade, por um lado, e a actividade caritativa organizada, por outro. Viu-se que a formação de estruturas justas não é imediatamente um dever da Igreja, mas pertence à esfera da política, isto é, ao âmbito da razão auto-responsável. Nisto, o dever da Igreja é mediato, enquanto lhe compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais, sem as quais não se constroem estruturas justas, nem estas permanecem operativas por muito tempo.

Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade é próprio dos fiéis leigos. Estes, como cidadãos do Estado, são chamados a participar pessoalmente na vida pública. Não podem, pois, abdicar « da múltipla e variada acção económica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum ». [21] Por conseguinte, é missão dos fiéis leigos configurar rectamente a vida social, respeitando a sua legítima autonomia e cooperando, segundo a respectiva competência e sob própria responsabilidade, com os outros cidadãos. [22] Embora as manifestações específicas da caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado, no entanto a verdade é que a caridade deve animar a existência inteira dos fiéis leigos e, consequentemente, também a sua actividade política vivida como « caridade social ». [23]

Caso diverso são as organizações caritativas da Igreja, que constituem um seu opus proprium, um dever que lhe é congénito, no qual ela não se limita a colaborar colateralmente, mas actua como sujeito directamente responsável, realizando o que corresponde à sua natureza. A Igreja nunca poderá ser dispensada da prática da caridade enquanto actividade organizada dos crentes, como aliás nunca haverá uma situação onde não seja precisa a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor.

As múltiplas estruturas de serviço caritativo
no actual contexto social

30. Antes ainda de tentar uma definição do perfil específico das actividades eclesiais ao serviço do homem, quero considerar a situação geral do empenho pela justiça e o amor no mundo actual.

a) Os meios de comunicação de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno, aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos. Se, às vezes, este « estar juntos » suscita incompreensões e tensões, o facto, porém, de agora se chegar de forma muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um apelo a partilhar a sua situação e as suas dificuldades. Cada dia vamo-nos tornando conscientes de quanto se sofre no mundo, apesar dos grandes progressos em campo científico e técnico, por causa de uma miséria multiforme, tanto material como espiritual. Por isso, este nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o próximo necessitado. Sublinhou-o já o Concílio Vaticano II com palavras muito claras: « No nosso tempo, em que os meios de comunicação são mais rápidos, em que quase se venceu a distância entre os homens, (...) a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens ». [24]

Por outro lado — e trata-se de um aspecto provocatório e ao mesmo tempo encorajador do processo de globalização —, o presente põe à nossa disposição inumeráveis instrumentos para prestar ajuda humanitária aos irmãos necessitados, não sendo os menos notáveis entre eles os sistemas modernos para a distribuição de alimento e vestuário, e também para a oferta de habitação e acolhimento. Superando as fronteiras das comunidades nacionais, a solicitude pelo próximo tende, assim, a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro. Justamente o pôs em relevo o Concílio Vaticano II: « Entre os sinais do nosso tempo, é digno de especial menção o crescente e inelutável sentido de solidariedade entre todos os povos ». [25] Os entes do Estado e as associações humanitárias apadrinham iniciativas com tal finalidade, fazendo-o na maior parte dos casos através de subsídios ou descontos fiscais, os primeiros, e pondo à disposição verbas consideráveis, as segundas. E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil supera significativamente a dos indivíduos.

b) Nesta situação, nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboração entre as estruturas estatais e as eclesiais, que se revelaram frutuosas. As estruturas eclesiais, com a transparência da sua acção e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor, poderão animar de maneira cristã também as estruturas civis, favorecendo uma recíproca coordenação que não deixará de potenciar a eficácia do serviço caritativo. [26] Neste contexto, formaram-se também muitas organizações com fins caritativos ou filantrópicos, que procuram, face aos problemas sociais e políticos existentes, alcançar soluções satisfatórias sob o aspecto humanitário. Um fenómeno importante do nosso tempo é a aparição e difusão de diversas formas de voluntariado, que se ocupam duma pluralidade de serviços. [27] Desejo aqui deixar uma palavra de particular apreço e gratidão a todos aqueles que participam, de diversas formas, nestas actividades. Tal empenho generalizado constitui, para os jovens, uma escola de vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem não simplesmente qualquer coisa, mas darem-se a si próprios. À anti-cultura da morte, que se exprime por exemplo na droga, contrapõe-se deste modo o amor que não procura o próprio interesse, mas que, precisamente na disponibilidade a « perder-se a si mesmo » pelo outro (cf. Lc 17, 33 e paralelos), se revela como cultura da vida.

Na Igreja Católica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais, também apareceram novas formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado. São formas nas quais se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligação entre evangelização e obras de caridade. Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor João Paulo II escreveu na sua Encíclica Sollicitudo rei socialis, [28] quando declarou a disponibilidade da Igreja Católica para colaborar com as organizações caritativas destas Igrejas e Comunidades, uma vez que todos nós somos movidos pela mesma motivação fundamental e temos diante dos olhos idêntico objectivo: um verdadeiro humanismo, que reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudá-lo a levar uma vida conforme a esta dignidade. Depois, a Encíclica Ut unum sint voltou a sublinhar que, para o progresso rumo a um mundo melhor, é necessária a voz comum dos cristãos, o seu empenho em « fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades de todos, especialmente dos pobres, humilhados e desprotegidos ». [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas.

O perfil específico da actividade caritativa da Igreja

31. O aumento de organizações diversificadas, que se dedicam ao homem em suas várias necessidades, explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao próximo ter sido inscrito pelo Criador na própria natureza do homem. Mas, o referido aumento é efeito também da presença, no mundo, do cristianismo, que não cessa de despertar e tornar eficaz este imperativo, muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da história. A reforma do paganismo, tentada pelo imperador Juliano o Apóstata, é apenas um exemplo incipiente de tal eficácia. Neste sentido, a força do cristianismo propaga-se muito para além das fronteiras da fé cristã. Por isso, é muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma. Mas, então quais são os elementos constitutivos que formam a essência da caridade cristã e eclesial?

a) Segundo o modelo oferecido pela parábola do bom Samaritano, a caridade cristã é, em primeiro lugar, simplesmente a resposta àquilo que, numa determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc. As organizações caritativas da Igreja, a começar pela Cáritas (diocesana, nacional e internacional), devem fazer o possível para colocar à disposição os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas. Relativamente ao serviço que as pessoas realizam em favor dos doentes, requer-se antes de mais a competência profissional: os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam fazer a coisa justa de modo justo, assumindo também o compromisso de continuar o tratamento. A competência profissional é uma primeira e fundamental necessidade, mas por si só não basta. É que se trata de seres humanos, e estes necessitam sempre de algo mais que um tratamento apenas tecnicamente correcto: têm necessidade de humanidade, precisam da atenção do coração. Todos os que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem distinguir-se pelo facto de que não se limitam a executar habilidosamente a acção conveniente naquele momento, mas dedicam-se ao outro com as atenções sugeridas pelo coração, de modo que ele sinta a sua riqueza de humanidade. Por isso, para tais agentes, além da preparação profissional, requer-se também e sobretudo a « formação do coração »: é preciso levá-los àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu íntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor (cf. Gal 5, 6).

b) A actividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias. Não é um meio para mudar o mundo de maneira ideológica, nem está ao serviço de estratégias mundanas, mas é actualização aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem necessidade. O tempo moderno, sobretudo a partir do Oitocentos, aparece dominado por diversas variantes duma filosofia do progresso, cuja forma mais radical é o marxismo. Uma parte da estratégia marxista é a teoria do empobrecimento: esta defende que, numa situação de poder injusto, quem ajuda o homem com iniciativas de caridade, coloca-se de facto ao serviço daquele sistema de injustiça, fazendo-o resultar, pelo menos até certo ponto, suportável. Deste modo fica refreado o potencial revolucionário e, consequentemente, bloqueada a reviravolta para um mundo melhor. Por isso, se contesta e ataca a caridade como sistema de conservação do status quo. Na realidade, esta é uma filosofia desumana. O homem que vive no presente é sacrificado ao moloch do futuro — um futuro cuja efectiva realização permanece pelo menos duvidosa. Na verdade, a humanização do mundo não pode ser promovida renunciando, de momento, a comportar-se de modo humano. Só se contribui para um mundo melhor, fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixão e em todo o lado onde for possível, independentemente de estratégias e programas de partido. O programa do cristão — o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus — é « um coração que vê ». Este coração vê onde há necessidade de amor, e actua em consequência. Obviamente, quando a actividade caritativa è assumida pela Igreja como iniciativa comunitária, à espontaneidade do indivíduo há que acrescentar também a programação, a previdência, a colaboração com outras instituições idênticas.

c) Além disso, a caridade não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. [30] Isto, porém, não significa que a acção caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre está em jogo o homem todo. Muitas vezes é precisamente a ausência de Deus a raiz mais profunda do sofrimento. Quem realiza a caridade em nome da Igreja, nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja. Sabe que o amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar. O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus é amor (cf. 1 Jo 4, 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a não ser amar. Sabe — voltando às questões anteriores — que o vilipêndio do amor é vilipêndio de Deus e do homem, é a tentativa de prescindir de Deus. Consequentemente, a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor. É dever das organizações caritativas da Igreja reforçar de tal modo esta consciência em seus membros, que estes, através do seu agir — como também do seu falar, do seu silêncio, do seu exemplo —, se tornem testemunhas credíveis de Cristo.

Os responsáveis da acção caritativa da Igreja

32. Por último, devemos ainda fixar a nossa atenção sobre os responsáveis pela acção caritativa da Igreja, a que já aludimos. Das reflexões feitas anteriormente, resulta claramente que o verdadeiro sujeito das várias organizações católicas que realizam um serviço de caridade é a própria Igreja — e isto a todos os níveis, a começar das paróquias passando pelas Igrejas particulares até chegar à Igreja universal. Por isso, foi muito oportuna a instituição do Pontifício Conselho Cor Unum, feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI, como instância da Santa Sé responsável pela orientação e coordenação entre as organizações e as actividades caritativas promovidas pela Igreja Católica. Depois, é cônsono à estrutura episcopal da Igreja o facto de, nas Igrejas particulares, caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apóstolos a primeira responsabilidade pela realização, mesmo actualmente, do programa indicado nos Actos dos Apóstolos (cf. 2, 42-44): a Igreja enquanto família de Deus deve ser, hoje como ontem, um espaço de ajuda recíproca e simultaneamente um espaço de disponibilidade para servir mesmo aqueles que, fora dela, têm necessidade de ajuda. No rito de Ordenação Episcopal, o acto verdadeiro e próprio de consagração é precedido por algumas perguntas ao candidato, nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofício e são-lhe lembrados os deveres do seu futuro ministério. Neste contexto, o Ordenando promete expressamente que será, em nome do Senhor, bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de conforto e ajuda. [31] O Código de Direito Canónico, nos cânones relativos ao ministério episcopal, não trata explicitamente da caridade como âmbito específico da actividade episcopal, falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras de apostolado no respeito da índole própria de cada uma. [32] Recentemente, porém, o Directório para o ministério pastoral dos Bispos aprofundou, de forma mais concreta, o dever da caridade como tarefa intrínseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese, [33] sublinhando que a prática da caridade é um acto da Igreja enquanto tal e que também ela, tal como o serviço da Palavra e dos Sacramentos, faz parte da essência da sua missão originária. [34]

33. No que diz respeito aos colaboradores que realizam, a nível prático, o trabalho caritativo na Igreja, foi dito já o essencial: eles não se devem inspirar nas ideologias do melhoramento do mundo, mas deixarem-se guiar pela fé que actua pelo amor (cf. Gal 5, 6). Por isso, devem ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo, pessoas cujo coração Cristo conquistou com o seu amor, nele despertando o amor ao próximo. O critério inspirador da sua acção deveria ser a afirmação presente na II Carta aos Coríntios: « O amor de Cristo nos constrange » (5, 14). A consciência de que, n'Ele, o próprio Deus Se entregou por nós até à morte, deve induzir-nos a viver, não mais para nós mesmos, mas para Ele e, com Ele, para os outros. Quem ama Cristo, ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressão e instrumento do amor que d'Ele dimana. O colaborador de qualquer organização caritativa católica quer trabalhar com a Igreja, e consequentemente com o Bispo, para que o amor de Deus se espalhe no mundo. Com a sua participação na prática eclesial do amor, quer ser testemunha de Deus e de Cristo e, por isso mesmo, quer fazer bem aos homens gratuitamente.

34. A abertura interior à dimensão católica da Igreja não poderá deixar de predispor o colaborador a sintonizar-se com as outras organizações que estão ao serviço das várias formas de necessidade; mas isso deverá verificar-se no respeito do perfil específico do serviço requerido por Cristo aos seus discípulos. No seu hino à caridade (cf. 1 Cor 13), São Paulo ensina-nos que a caridade é sempre algo mais do que mera actividade: « Ainda que distribua todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita » (v. 3). Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviço eclesial; nele se encontram resumidas todas as reflexões que fiz sobre o amor, ao longo desta Carta Encíclica. A acção prática resulta insuficiente se não for palpável nela o amor pelo homem, um amor que se nutre do encontro com Cristo. A íntima participação pessoal nas necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo: para que o dom não humilhe o outro, devo não apenas dar-lhe qualquer coisa minha, mas dar-me a mim mesmo, devo estar presente no dom como pessoa.

35. Este modo justo de servir torna humilde o agente. Este não assume uma posição de superioridade face ao outro, por mais miserável que possa ser de momento a sua situação. Cristo ocupou o último lugar no mundo — a cruz — e, precisamente com esta humildade radical, nos redimiu e ajuda sem cessar. Quem se acha em condições de ajudar há-de reconhecer que, precisamente deste modo, é ajudado ele próprio também; não é mérito seu nem título de glória o facto de poder ajudar. Esta tarefa é graça. Quanto mais alguém trabalhar pelos outros, tanto melhor compreenderá e assumirá como própria esta palavra de Cristo: « Somos servos inúteis » (Lc 17, 10). Na realidade, ele reconhece que age, não em virtude de uma superioridade ou uma maior eficiência pessoal, mas porque o Senhor lhe concedeu este dom. Às vezes, a excessiva vastidão das necessidades e as limitações do próprio agir poderão expô-lo à tentação do desânimo. Mas é precisamente então que lhe serve de ajuda saber que, em última instância, ele não passa de um instrumento nas mãos do Senhor; libertar-se-á assim da presunção de dever realizar, pessoalmente e sozinho, o necessário melhoramento do mundo. Com humildade, fará o que lhe for possível realizar e, com humildade, confiará o resto ao Senhor. É Deus quem governa o mundo, não nós. Prestamos-Lhe apenas o nosso serviço por quanto podemos e até onde Ele nos dá a força. Mas, fazer tudo o que nos for possível e com a força de que dispomos, tal é o dever que mantém o servo bom de Cristo sempre em movimento: « O amor de Cristo nos constrange » (2 Cor 5, 14).

36. A experiência da incomensurabilidade das necessidades pode, por um lado, fazer-nos cair na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus, pelos vistos, não consegue: a solução universal de todo o problema. Por outro lado, aquela pode tornar-se uma tentação para a inércia a partir da impressão de que, seja como for, nunca se levaria nada a termo. Nesta situação, o contacto vivo com Cristo é a ajuda decisiva para prosseguir pela justa estrada: nem cair numa soberba que despreza o homem e, na realidade, nada constrói, antes até destrói; nem abandonar-se à resignação que impediria de deixar-se guiar pelo amor e, deste modo, servir o homem. A oração, como meio para haurir continuamente força de Cristo, torna-se aqui uma urgência inteiramente concreta. Quem reza não desperdiça o seu tempo, mesmo quando a situação apresenta todas as características duma emergência e parece impelir unicamente para a acção. A piedade não afrouxa a luta contra a pobreza ou mesmo contra a miséria do próximo. A Beata Teresa de Calcutá é um exemplo evidentíssimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oração não só não lesa a eficácia nem a operosidade do amor ao próximo, mas é realmente a sua fonte inexaurível. Na sua carta para a Quaresma de 1996, esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos: « Nós precisamos desta união íntima com Deus na nossa vida quotidiana. E como poderemos obtê-la? Através da oração ».

37. Chegou o momento de reafirmar a importância da oração face ao activismo e ao secularismo que ameaça muitos cristãos empenhados no trabalho caritativo. Obviamente o cristão que reza, não pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu; procura, antes, o encontro com o Pai de Jesus Cristo, pedindo-Lhe que esteja presente, com o conforto do seu Espírito, nele e na sua obra. A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono à sua vontade impedem a degradação do homem, salvam-no da prisão de doutrinas fanáticas e terroristas. Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz de Deus, acusando-O de permitir a miséria sem sentir compaixão pelas suas criaturas. Mas, quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem, sobre quem poderá contar quando a acção humana se demonstrar impotente?

38. É certo que Job pôde lamentar-se com Deus pelo sofrimento, incompreensível e aparentemente injustificado, presente no mundo. Assim se exprime ele na sua dor: « Oh! Se pudesse encontrá-Lo e chegar até ao seu próprio trono! (...) Saberia o que Ele iria responder-me e ouviria o que Ele teria para me dizer. Oporia Ele contra mim o seu grande poder? (...) Por isso, a sua presença me atemoriza; contemplo-O e tremo diante d'Ele. Deus enervou o meu coração, o Omnipotente encheu-me de terror » (23, 3.5-6. 15-16). Muitas vezes não nos é concedido saber o motivo pelo qual Deus retém o seu braço, em vez de intervir. Aliás Ele não nos impede sequer de gritar, como Jesus na cruz: « Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? » (Mt 27, 46). Num diálogo orante, havemos de lançar-Lhe em rosto esta pergunta: « Até quando esperarás, Senhor, Tu que és santo e verdadeiro? » (Ap 6, 10). Santo Agostinho dá a este nosso sofrimento a resposta da fé: « Si comprehendis, non est Deus – se O compreendesses, não seria Deus ». [35] O nosso protesto não quer desafiar a Deus, nem insinuar n'Ele a presença de erro, fraqueza ou indiferença. Para o crente, não é possível pensar que Ele seja impotente, ou então que « esteja a dormir » (cf. 1 Re 18, 27). Antes, a verdade é que até mesmo o nosso clamor constitui, como na boca de Jesus na cruz, o modo extremo e mais profundo de afirmar a nossa fé no seu poder soberano. Na realidade, os cristãos continuam a crer, não obstante todas as incompreensões e confusões do mundo circunstante, « na bondade de Deus e no seu amor pelos homens » (Tt 3, 4). Apesar de estarem imersos como os outros homens na complexidade dramática das vicissitudes da história, eles permanecem inabaláveis na certeza de que Deus é Pai e nos ama, ainda que o seu silêncio seja incompreensível para nós.

39. A fé, a esperança e a caridade caminham juntas. A esperança manifesta-se praticamente nas virtudes da paciência, que não esmorece no bem nem sequer diante de um aparente insucesso, e da humildade, que aceita o mistério de Deus e confia n'Ele mesmo na escuridão. A fé mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por nós e assim gera em nós a certeza vitoriosa de que isto é mesmo verdade: Deus é amor! Deste modo, ela transforma a nossa impaciência e as nossas dúvidas em esperança segura de que Deus tem o mundo nas suas mãos e que, não obstante todas as trevas, Ele vence, como revela de forma esplendorosa o Apocalipse, no final, com as suas imagens impressionantes. A fé, que toma consciência do amor de Deus revelado no coração trespassado de Jesus na cruz, suscita por sua vez o amor. Aquele amor divino é a luz — fundamentalmente, a única — que ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir. O amor é possível, e nós somos capazes de o praticar porque criados à imagem de Deus. Viver o amor e, deste modo, fazer entrar a luz de Deus no mundo: tal é o convite que vos queria deixar com a presente Encíclica.


CONCLUSÃO


40. Por fim, olhemos os Santos, aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade. Penso, de modo especial, em Martinho de Tours († 397), primeiro soldado, depois monge e Bispo: como se fosse um ícone, ele mostra o valor insubstituível do testemunho individual da caridade. Às portas de Amiens, Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre; durante a noite, aparece-lhe num sonho o próprio Jesus trazendo vestido aquele manto, para confirmar a perene validade da sentença evangélica: « Estava nu e destes-Me de vestir (...). Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 36.40). [36] Mas, na história da Igreja, quantos outros testemunhos de caridade podem ser citados! Em particular, todo o movimento monástico, logo desde os seus inícios com Santo Antão Abade († 356), exprime um imenso serviço de caridade para com o próximo. No encontro « face a face » com aquele Deus que é Amor, o monge sente a impelente exigência de transformar toda a sua vida em serviço do próximo, além do de Deus naturalmente. Assim se explicam as grandes estruturas de acolhimento, internamento e tratamento que surgiram ao lado dos mosteiros. De igual modo se explicam as extraordinárias iniciativas de promoção humana e de formação cristã, destinadas primariamente aos mais pobres, de que se ocuparam primeiro as ordens monásticas e mendicantes e, depois, os vários institutos religiosos masculinos e femininos ao longo de toda a história da Igreja. Figuras de Santos como Francisco de Assis, Inácio de Loyola, João de Deus, Camilo de Léllis, Vicente de Paulo, Luísa de Marillac, José B. Cottolengo, João Bosco, Luís Orione, Teresa de Calcutá — para citar apenas alguns nomes — permanecem modelos insignes de caridade social para todos os homens de boa vontade. Os Santos são os verdadeiros portadores de luz dentro da história, porque são homens e mulheres de fé, esperança e caridade.


41. Entre os Santos, sobressai Maria, Mãe do Senhor e espelho de toda a santidade. No Evangelho de Lucas, encontramo-La empenhada num serviço de caridade à prima Isabel, junto da qual permanece « cerca de três meses » (1, 56) assistindo-a na última fase da gravidez. « Magnificat anima mea Dominum – A minha alma engrandece o Senhor » (Lc 1, 46), disse Ela por ocasião de tal visita, exprimindo assim todo o programa da sua vida: não colocar-Se a Si mesma ao centro, mas dar espaço ao Deus que encontra tanto na oração como no serviço ao próximo — só então o mundo se torna bom. Maria é grande, precisamente porque não quer fazer-Se grande a Si mesma, mas engrandecer a Deus. Ela é humilde: não deseja ser mais nada senão a serva do Senhor (cf. Lc 1, 38.48). Sabe que contribui para a salvação do mundo, não realizando uma sua obra, mas apenas colocando-Se totalmente à disposição das iniciativas de Deus. É uma mulher de esperança: só porque crê nas promessas de Deus e espera a salvação de Israel, é que o Anjo pode vir ter com Ela e chamá-La para o serviço decisivo de tais promessas. É uma mulher de fé: « Feliz de Ti, que acreditaste », diz-lhe Isabel (cf. Lc 1, 45). O Magnificat — um retrato, por assim dizer, da sua alma — é inteiramente tecido com fios da Sagrada Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus. Desta maneira se manifesta que Ela Se sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus, dela sai e a ela volta com naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se palavra d'Ela, e a sua palavra nasce da Palavra de Deus. Além disso, fica assim patente que os seus pensamentos estão em sintonia com os de Deus, que o d'Ela é um querer juntamente com Deus. Vivendo intimamente permeada pela Palavra de Deus, Ela pôde tornar-Se mãe da Palavra encarnada. Enfim, Maria é uma mulher que ama. E como poderia ser de outro modo? Enquanto crente que na fé pensa com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus, Ela não pode ser senão uma mulher que ama. Isto mesmo o intuímos nós nos gestos silenciosos que nos referem os relatos evangélicos da infância. Vemo-lo na delicadeza com que, em Caná, Se dá conta da necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus. Vemo-lo na humildade com que Ela aceita ser transcurada no período da vida pública de Jesus, sabendo que o Filho deve fundar uma nova família e que a hora da Mãe chegará apenas no momento da cruz, que será a verdadeira hora de Jesus (cf. Jo 2, 4; 13, 1). Então, quando os discípulos tiverem fugido, Maria permanecerá junto da cruz (cf. Jo 19, 25-27); mais tarde, na hora de Pentecostes, serão eles a juntar-se ao redor d'Ela à espera do Espírito Santo (cf. Act 1, 14).


42. À vida dos Santos, não pertence somente a sua biografia terrena, mas também o seu viver e agir em Deus depois da morte. Nos Santos, torna-se óbvio como quem caminha para Deus não se afasta dos homens, antes pelo contrário torna-se-lhes verdadeiramente vizinho. Em ninguém, vemos melhor isto do que em Maria. A palavra do Crucificado ao discípulo — a João e, através dele, a todos os discípulos de Jesus: « Eis aí a tua mãe » (Jo 19, 27) — torna-se sempre de novo verdadeira no decurso das gerações. Maria tornou-Se realmente Mãe de todos os crentes. À sua bondade materna e bem assim à sua pureza e beleza virginal, recorrem os homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanças, nas suas alegrias e sofrimentos, nos seus momentos de solidão mas também na partilha comunitária; e sempre experimentam o benefício da sua bondade, o amor inexaurível que Ela exala do fundo do seu coração. Os testemunhos de gratidão, tributados a Ela em todos os continentes e culturas, são o reconhecimento daquele amor puro que não se busca a si próprio, mas quer simplesmente o bem. A devoção dos fiéis mostra, ao mesmo tempo, a infalível intuição de como um tal amor é possível: é-o graças à mais íntima união com Deus, em virtude da qual se fica totalmente permeado por Ele — condição esta que permite, a quem bebeu na fonte do amor de Deus, tornar-se ele próprio uma fonte « da qual jorram rios de água viva » (Jo 7, 38). Maria, Virgem e Mãe, mostra-nos o que é o amor e donde este tem a sua origem e recebe incessantemente a sua força. A Ela confiamos a Igreja, a sua missão ao serviço do amor:


Santa Maria, Mãe de Deus,
Vós destes ao mundo a luz verdadeira,
Jesus, vosso Filho – Filho de Deus.
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota d'Ele.
Mostrai-nos Jesus.
Guiai-nos para Ele.
Ensinai-nos a conhecê-Lo e a amá-Lo,
para podermos também nós
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de água viva
no meio de um mundo sequioso.


Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 25 de Dezembro — solenidade do Natal do Senhor — de 2005, primeiro ano de Pontificado.


BENEDICTUS PP. XVI



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